domingo, 30 de dezembro de 2012

Oxente Tiago

A epistola de Tiago
Não foi Paulo que escreveu
Mas se sabe de certeza
Que as palavras Deus lhe deu

Foi Tiago que falou
Pra ser feliz na aflição
Se a fé não recuou
É a perseverança meu irmão

Tem coisa que eu quero
Mas Deus num vai me dá
Por que além de não orar sincero
A minha intenção é má

A lingua é bicho ruim
Ela tu tem que controlar
Se não fizer assim
Besta, tu está a te enganar

Discriminação entre os irmãos
Isso não deve acontecer
Do barraco ou da mansão
Igualdade que Jesus que vê

O lance da unidade
O inimigo quer combater
Mas se sujeitar a Deus de verdade
Põe o diabo para correr

Se a luta é grande
Irmão, não vá desanimar
A promessa foi feita
Jesus logo vai voltar

Ajude o irmãozinho
Se da verdade desviou
Não deixe ele sozinho
Ame-o como Jesus amou

Andar com fé eu vou
Do jeitim que Jesus fez
Se você não empolgou
Leia Tiago outra vez

Obra é coisa boa
Com a fé deve andar
Se Jesus salva a pessoa
Ela tem que frutificar

Oxente Tiago
Agora eu consigo vê
Evangelho de verdade
É fé que pensa, razão que crê


Valdson Costa Almeida

domingo, 23 de dezembro de 2012

O futuro é uma criança



Mais um Natal se aproxima, a tradicional recordação do nascimento do menino Jesus, Deus encarnado em um ser infante. História de milagre, de humildade, de pobreza e de esperança. Talvez estejamos muito longe de considerar todos estes aspectos simbólicos trazidos com a celebração do Natal. Em grande parte, provavelmente, devido à secularização e mercantilização não apenas desta data, como também de outros feriados religiosos, como a Páscoa.

Mas para mim o Natal sempre traz a lembrança do Advento: tempo de reflexão, arrependimento e nutrição da esperança. Resgata à mente a importância de meus queridos, amigos e, especialmente, familiares, com os quais já não compartilho minha rotina, mas com os quais tenho podido compartilhar deste momento especial.

Mas mais do que isto, o Natal traz também à mente o pensamento de um desejo, um futuro novo.

E o futuro é uma criança.

É engraçado como uma ideia como esta pode soar estranha, mesmo que hoje vivamos em uma civilização cujos símbolos e referências culturais e valorativas se pautem por esta matriz milenar que é o cristianismo. Nos acostumamos a pensar Deus como Pai, Senhor, Ser supremo. Obviamente não se nega isto (entre os cristãos, é claro). Mas ressalto que mesmo no dias mais comuns, pouco lembramos deste aspecto infantil da vida de Cristo (e do próprio Deus). Fala-se sempre, com bons juízos ou preceitos equivocados, do aspecto grandioso e universal, gigantesco e atemorizador, dominante e indestrutível que seria constituinte da figura de Yahweh. Mas pouco se diz da figura frágil representada pela criança chorosa, carente e dependente, deitada naquela manjedoura – a não ser, é claro, no período do Advento. O aspecto humano pelo qual Jesus foi apresentado ao mundo não podia ser mais confuso. Poderia dizer também: não podia ser mais genial.

A história daquela criança me conduz a um olhar sobre as nossas crianças. Jesus, já em sua fase adulta, demonstrava um carinho especial para com os pequeninos. Exortava seus pares de que aqueles que recebessem uma destas crianças, estariam O recebendo. E dizia: “Cuidado para não desprezarem nem um só destes pequeninos! Pois eu lhes digo que os anjos deles nos céus estão sempre vendo a face de meu Pai celeste” (Mt. 18: 5, 10). Se estamos falando do nascimento de uma criança, o Natal nos permite falar dela, mas também de outras crianças como ela, e do futuro delas. E o tempo que vem, será que tempo para nossas crianças?

Há pouco tempo assisti ao vídeo, até então desconhecido para mim, de Happy Xmas, composta por John Lennon e Yoko Ono. A música tem um subtítulo: War is over. O vídeo em questão é recheado de duras e tenebrosas imagens, que atestam uma realidade à qual não damos a devida importância: crianças sem futuro. Crianças em zonas de guerra, passando fome, abandonadas, machucadas, doentes, sem sequer saberem o que pode significar a palavra esperança.

Nossa lembrança deve se voltar a elas. Mais do que celebrar o nascimento de nosso Salvador, creio que o desejo presente no coração de Deus se coloca a nós com este propósito: não despreze nenhum destes pequeninos. A frágil criança naquela manjedoura deve nos trazer a lembrança daquelas meninas e meninos que padecem onde se ausenta o amor, a igualdade e a justiça. Mais do que recordar aquilo que a Palavra nos diz sobre o nascimento do menino Deus, eu desejo profundamente que você possa encontrar Deus no olhar destas crianças. E que você possa compreender o sofrimento presente no coração de Deus a partir da observação da angústia destas crianças. E, principalmente, que você possa ansiar o futuro. Sonhar com o novo, com as mesmas cores desafiadoras que constituem o sonho das crianças. Para que elas não deixem de ser o futuro.

Feliz Natal.




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Sydnei Melo

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O que é pleno não tem falta; o que é eterno é infindável.


Outro dia eu estava lendo esse texto sobre o gozo em Cristo, recebido através da luz (Espírito Santo) e da Verdade (Palavra de Deus) e este me chamou muito a atenção para o fato da centralidade da nossa existência:

Envia a tua luz e a tua verdade; elas me guiarão e me levarão ao teu santo monte, ao lugar onde habitas. Então irei ao altar de Deus, a Deus, a fonte da minha plena alegria.” Sl 43:3-4

E, o mais interessante é que, como escreve John Piper, algo que é pleno não tem falta. Além dessa alegria ser plena, ela não tem fim.

“A sabedoria de Deus em planejar as coisas desta maneira (ocultar a sabedoria Dele aos sábios e entendidos) não somente lhe traz alegria, mas também leva à maior alegria de seu povo. A maior alegria deles é a alegria em Deus. Salmos 16:11 ensina isso com clareza: ‘Tu [Deus] me farás ver os caminhos da vida; na Tua presença há plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetuamente’. Plenitude de alegria e gozo eterno não podem ser aprimorados. Nada é mais complexo do que a plenitude e mais longo do que aquilo que é eterno. E essa alegria é resultado da presença de Deus e não das realizações do homem.
Portanto, a fim de amar-nos de maneira infinita e dar-nos deleite eterno e pleno, Deus, por meio da cruz de Cristo, nos garante a única coisa que nos satisfará total e eternamente, ou seja, a vindicação e a experiência do valor infinito de Sua glória. Somente Ele é fonte de todo prazer pleno e duradouro.” (John Piper no livro Pense págs 217 e 218).

Que realmente possamos buscá-Lo com a plena convicção de que Deus é nosso maior prazer e completude.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Nosso destino


"O convite para aceitar Jesus como Salvador, apenas como credencial para ir para o Céu, definitivamente não é a melhor convocação. A melhor convocação é o chamado para se tornar outra pessoa. A peregrinação espiritual cristã não é uma migração de um lugar para o outro, mas de um estado de ser para outro. Nosso destino não é o Céu. Nosso destino é Cristo."


Ed Rene Kivitz

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Crônicas de Rubem Alves - Casamento

Tênis X Frescobol

Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.

Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: ‘Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?\' Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.’

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: ‘Eu te amo, eu te amo...’ Barthes advertia: ‘Passada a primeira confissão, ‘eu te amo\' não quer dizer mais nada.’ É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: ‘Erótica é a alma.’

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada - palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.

O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra - pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir... E o que errou pede desculpas; e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá...

Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros cadernos, é sobre este jogo de tênis:
‘Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo\'. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida\'. A situação está salva e o ódio vai aumentando.’

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim...(O retorno e terno, p. 51.)


Que bom que eles se casaram!

A Mema tinha a delicadeza de uma asa de borboleta. Jovem, tinha sido muito bonita. Teve um caso de amor. Mas o pai não permitiu o casamento. O moço era pobre e da ‘prateleira de baixo’. Ela aceitou o veredicto do pai e transformou sua tristeza numa delicadeza mansa para com tudo e todos, especialmente para com os sobrinhos. Sempre que algum deles adoecia, a Mema era chamada. Todos a adoravam. Naquela manhã ela reuniu os sobrinhos e os levou para passear, longe da casa. Eles não entenderiam o que estava para acontecer. Na verdade, eles não deviam entender. Na casa o movimento era incomum, mulheres entrando e saindo de um quarto, água fervendo no fogão, o marido andando como um bobo de um lado para o outro. Até que se ouviu o choro de uma criança. O choro anunciava o nascimento. A parteira anunciou: ‘É um menino!’ A mãe ficou desapontada. Já tinha três filhos homens. Tinha rezado muito para que na sua barriga estivesse uma menina. Toda mãe sonha com uma menina como companheira e enfermeira, para quando os dias forem maus. Quando a Mema voltou com os meninos, eles foram informados pelo pai que um irmãozinho havia chegado - sem explicar nem como e nem de onde. Era o dia 15 de setembro de 1933. Assim foi: no desejo de minha mãe eu deveria ter sido uma menina... Ela mesma me disse, muito tempo depois, carinhosamente.

Hoje, decorridos sessenta e seis anos, mortos meu pai, minha mãe, Mema, parteiras, comadres, eu fico pensando sobre o enigma do casamento do meu pai e da minha mãe. Eu nunca os vi brigando. Nunca ouvi uma troca de palavras ásperas entre eles. E, no entanto, nunca pude entender por que eles se casaram. Minha impressão era de que eles viviam em mundos imensamente distantes, bolhas que não se comunicavam. Vieram-me à memória as palavras que Thomas Mann colocou na boca de José. José, vendido pelos irmãos invejosos a mercadores de escravos que iam para o Egito, diz ao seu novo dono: ‘Estamos assentados a um metro de distância um do outro. E, no entanto, ao teu redor gira um universo do qual tu és o centro, e não eu. E ao meu redor gira um universo do qual o centro sou eu, e não tu.’ (Thomas Mann, José no Egito). Era assim que eu sentia o meu pai e a minha mãe.

Meu pai era um sonhador. A fotografia dele de que mais gosto é uma em que ele está assentado numa poltrona, fumando o seu cachimbo, com olhar perdido. O cheiro e a fumaça do cachimbo têm um poder ‘desrealizador’ (essa palavra inexistente, eu acho, é de Bachelard...). A fumaça, em suas espirais azuis, vai dissolvendo os contornos nítidos das coisas. Os pintores chineses sabiam disto e, para misturar realidade com irrealidade, enchiam suas telas com neblinas. O cachimbo é um produtor de neblinas. Na neblina, ali onde a realidade fica irrealidade, o cachimbo abre o mundo dos sonhos. Meu pai, homem de origem humilde e pobre, sem árvore genealógica, foi homem de negócios bem sucedido e rico e terminou sua vida como caixeiro viajante pobre. Quem desejar saber algo sobre a alma dos caixeiros viajantes que leia a peça de Miller ‘A morte do caixeiro viajante’. Quando vi esta peça pela primeira vez, num teatro em São Paulo, o impacto foi tão grande que me senti fisicamente mal. Era a estória da vida do meu pai. Mas o fato é que, na alma, ele nunca foi nem uma coisa e nem a outra. Se tivesse podido teria sido um ator de teatro. Sei mesmo que ele chegou a fazer algumas experiências no palco, lá em Boa Esperança. Não teve sucesso como ator de palco mas foi um ator, a vida inteira. O que caracteriza um bom ator é que, ao representar, ele se esquece que está representando. Ele não representa; ele vive os papéis. Ri, chora, sofre, como se fosse verdade. Vida a fora meu pai se especializou em papéis alegres. Seu público era qualquer grupo de pessoas. Qualquer assunto era motivo para que ele criasse, através da palavra, uma trama fascinante que a todos encantava. Essa capacidade é uma grande virtude nos atores profissionais. Mas estes sabem que, ao sair do palco, o teatro terminou. Vida e teatro não são a mesma coisa. Mas meu pai não saía do palco. Não distinguia entre teatro e vida. Para ele a vida inteira era um teatro. Pagou um preço muito caro por sua vocação artística. Porque o ‘script’ da vida não é igual ao ‘script’ da peça. Por isso morreu pobre. Meu pai sonhou a vida inteira.

Minha mãe vinha de um mundo completamente diferente. Nascida num rico sobrado colonial, com vidros coloridos importados, longos corredores, salas barrocas, festas, sua família se gabava de ancestrais nobres e poderosos. Diziam, inclusive, que um dos seus membros havia sido governador da província das Minas Gerais, havendo deixado em Ouro Preto um chafariz com o seu nome - fato que nunca pude comprovar. As viagens para o exterior não eram incomuns. Minha tia Georgina, jovem de dezoito anos no final do século passado, foi sozinha aos Estados Unidos tratar de saúde, numa longa viagem de vapor. Todas as filhas eram pintoras. Todas sabiam tocar algum instrumento: bandolim, cítara (lembro-me de duas cítaras abandonadas, bordadas com madrepérola), piano. Minha mãe, além do bandolim, que abandonou, era pianista. Entendam-me. Não é que ela soubesse tocar piano e o fizesse em saraus musicais, como o fazem inúmeras mocinhas. O piano era a sua alma. Lembro-me dela tocando a Sonata ao Luar, de Beethoven, a balada em sol menor de Chopin. Minha mãe, mulher tímida e de poucas palavras, ao se assentar ao piano entrava num mundo de beleza musical a que poucas pessoas tinham acesso. Tocava, e a música criava ao seu redor um bolha encantada onde ela estava só. Meu pai ficava sempre de fora, embora fosse delicado e atencioso. Vez por outra ele dava um palpite: ‘Toque uma daquelas valsinhas boas para dormir...’ Ela sorria e tocava. Deixava sua bolha mágica para atender ao pedido da criança. Porque, esteticamente, meu pai era uma criança.

Foi minha mãe que me abriu o mundo da música. Menino ainda, ela me levava aos concertos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Foi com ela que ouvi Brailowski, Nikita Magallof, Friedrich Gulda. Curiosamente, foi ela que ensinou o piano a uma comadre, Da. Augusta Freire, e suas filhas, em Boa Esperança. Pois Da. Augusta, num descuido do amor, ficou grávida de novo depois de muitos anos, e o menininho intruso recebeu o nome de Nelson Freire, que atualmente é um dos maiores pianistas do mundo.

Minha mãe falava pouco, muito pouco. Nós nos comunicávamos pela música. Ela ficava assentada, ouvindo, sem nada dizer, enquanto eu estudava a sonata de Chopin.

Há músicas que a gente ouve e gosta imediatamente. Sua beleza está no jardim de entrada. Ouvindo estas músicas a gente tem uma experiência imediata de comunhão: todos são igualmente comovidos. A música clássica é diferente. Sua beleza não se encontra no jardim de entrada mas num quarto fechado à chave. Quem não tem a chave não entra. A beleza da música clássica precisa ser aprendida paciente e disciplinadamente. Quem aprendeu tem a chave: entra no quarto e tem a experiência da beleza. Quem não aprendeu fica de fora e não percebe nada. Por isso a música clássica pode produzir uma dolorosa solidão.

Do meu pai, eu acho, herdei o gosto pela palavra, o prazer em criar mundos pela escrita e pela fala. O mundo do meu pai se abre para fora, para uma comunhão fácil. Da minha mãe recebi as chaves que abrem as portas que levam ao mundo da música clássica. O mundo de minha mãe se abre para dentro, onde se encontram a alegria e uma comunhão difícil que beira à solidão.

Não sei por que se casaram. Mas, que bom que se casaram! Porque, se não tivessem se casado, eu não teria nascido naquela manhã do dia 15 de setembro de 1933. (O amor que acende a lua, p.159).


Rubem Alves

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Sobre Santidade


Como jovem e pastor, vejo que o projeto de santidade da “igreja” virou um peso para a juventude especialmente.

Essa santidade ultratranscendente, alienada do mundo e espiritualóide, não faz sentido para a vida nessa terra. 

Além do que mitificarmos e mistificarmos o padrão de santidade, afastou a possibilidade de um viver santo nas coisas simples do cotidiano. 

Nosso chamado a uma vida santa só é possível se entendermos a santidade enquanto um projeto de existência humana e cotidiana.

Ser "santo" é o jeito de ser gente que devemos perseguir. A santidade é o padrão mais alto e louvável do que é ser humano.

Por isso, para um viver santo, precisamos de Deus e precisamos do outro. 

É o Espírito que produzirá isso em nós e é o outro que reconhecerá essa marca em nosso cotidiano. Santidade é dar espaço em nossas vidas para Deus (em nós) se tornar humano.


Fabricio Cunha

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Deus é traiçoeiro


"E, outra coisa, o Diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto! A força dele, quando quer - moço ! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza."


Guimarães Rosa

Aniversário


Os aniversários devem ser celebrados. Julgo que é mais importante celebrar um aniversário do que o sucesso de um exame, uma promoção ou uma vitória. Porque celebrar um aniversário significa dizer a alguém: “obrigado pelo que fez, ou disse, ou conseguiu”. Não, nós dizemos: “obrigado por ter nascido e por estar aqui conosco”.

Nos aniversários celebramos o tempo presente. Não nos queixamos do que aconteceu nem especulamos sobre o que acontecerá, mas encorajamos alguém e damos chance para que todos digam: “Eu te amo”.

Conheço um amigo que, no dia de seu aniversário, é agarrado pelo seus amigos, levado ao banheiro e lançado todo o vestido para a banheiro e lançado todo vestido para a banheira cheia de água. E todos esperam com ansiedade pelo seu dia de anos; inclusive ele próprio. Não faço ideia de onde terá vindo esta tradição, mas ser levantado e “rebatizado” parece uma ótima  maneira de celebrar a própria vida. Assim tomamos consciência de que, embora tendo que ter os pés bem firmes na terra, fomos criados para outros voos, e que, embora nos sujemos facilmente, podemos sempre lavar-nos e dar à nossa vida um novo começo. 

Celebrar um aniversário recorda-nos que a vida é bela e é neste espírito que devemos celebrar o dia de anos das pessoas todos os dias, demonstrado gratidão, compreensão, perdão, gentileza e afeto. Isto equivale a dizer: “É bom você estar vivo; é bom você fazer o mesmo caminho que eu, neste mundo. Alegremo-nos com isso. Este é o dia que o Senhor fez para existirmos e estarmos juntos”. 


NOUWEN, Henri.
Mosaicos do presente: Vida no Espírito. São Paulo: Paulinas, 1998.

A Santa Ineficiência de Henri Nouwen


"Certa vez quando estava jantando com um grupo de escritores, a conversa começou a girar em torno da correspondência que recebemos de leitores. Richard Foster e Eugene Peterson mencionaram um jovem intenso que havia procurado direção espiritual tanto de um como do outro. Contaram que responderam da melhor maneira que sabiam, escrevendo cartas e recomendando livros sobre espiritualidade. Foster acabara de saber que o mesmo jovem na sua busca de respostas fizera contato com Henri Nouwen.
“Vocês não vão acreditar no que Nouwen fez,” ele disse. “Convidou este estranho a viver com ele por um mês a fim de poder aconselhá-lo pessoalmente.”
A maioria dos escritores protege com o máximo de zelo suas agendas e sua privacidade. Nouwen, que morreu de um ataque cardíaco em setembro de 1996, rompeu com tais barreiras de profissionalismo. Sua vida inteira, de fato, demonstrou uma “santa ineficiência”.
Treinado em Holanda como psicólogo e teólogo, Nouwen passou os primeiros anos da carreira correndo atrás de seus alvos, realizando e alcançando sucesso. Lecionou em Notre Dame, Yale, e Harvard, publicou em média mais de um livro por ano, e viajou extensamente como palestrante de conferências. Seu currículo era algo que parecia impossível de atingir — e era exatamente este o seu problema. Sua agenda apertada e a concorrência implacável estavam sufocando sua própria vida espiritual.
Nouwen foi para a América do Sul por seis meses, para investigar um novo papel como missionário ao terceiro mundo. Uma intensa agenda de palestras que o esperava quando voltou para os Estados Unidos só piorou as coisas. Finalmente, Nouwen caiu nos braços da comunidade L’Arche (da Arca) na França, que era um lar para pessoas com sérias incapacidades físicas. Lá se sentiu tão nutrido e apoiado que concordou em mudar para o lar da mesma comunidade em Toronto, no Canadá, chamado Daybreak (ou Amanhecer). Foi ali que Nouwen passou os últimos dez anos da sua vida, ainda escrevendo e viajando, mas sempre voltando ao seu abrigo.
Visitei Nouwen uma vez, e almocei com ele no seu pequeno quartinho. Só tinha uma cama, uma estante de livros, e algumas peças de mobília estilo Shaker (que originou na Inglaterra com um grupo cristão do século 18, e que se caracteriza pela simplicidade, praticidade, e ausência de ornamentação). As paredes não eram decoradas, com exceção de uma cópia de uma pintura de Van Gogh, e alguns símbolos religiosos. Um atendente da comunidade nos serviu com uma travessa de salada e pão. Não havia nenhum aparelho de fax, nenhum computador, nenhuma agenda na parede — neste quarto, pelo menos, Nouwen havia encontrado serenidade. A “indústria” da igreja parecia estar muito distante.
Depois do almoço, celebramos uma eucaristia especial para Adão, o jovem deficiente de quem Nouwen cuidava. Com solenidade, mas também com um brilho no seu olho, Nouwen dirigiu a liturgia em honra do vigésimo sexto aniversário de Adão. Incapaz de conversar, andar, ou vestir-se, profundamente retardado, Adão não dava nenhum sinal de compreensão. Parecia reconhecer, pelo menos, que sua família estava presente. Babou durante toda a cerimônia e grunhiu bem alto algumas vezes.
Mais tarde, Nouwen contou que levava quase duas horas para preparar Adão todos os dias. Dando banho nele, fazendo sua barba, escovando seus dentes, penteando seu cabelo, guiando sua mão para tomar o café da manhã— estes simples atos repetitivos se transformaram praticamente na sua hora de meditação.
Devo admitir que tive uma dúvida passageira se esta era a melhor maneira deste ministro atarefado usar seu tempo. Uma outra pessoa não poderia assumir estas tarefas manuais? Quando abri o assunto cautelosamente com o próprio Nouwen, ele me informou que eu estava entendendo tudo errado.
“Não estou sacrificando coisa alguma,” ele insistiu. “Sou eu, e não Adão, que está tirando o maior benefício da nossa amizade.”
Durante todo o restante do dia, Nouwen continuou a voltar para minha pergunta, mostrando várias maneiras em que havia se beneficiado do seu relacionamento com Adão. No princípio fora difícil, ele admitiu. O toque físico, o afeto, e a sujeira de cuidar de uma pessoa sem coordenação, não vieram facilmente. Mas aprendera a amar Adão, a realmente amá-lo. No processo, aprendeu como deve ser para Deus amar a nós — pessoas sem coordenação espiritual, retardadas, capazes de responder apenas com o que deve parecer a Deus como grunhidos e gemidos indistintos. De fato, trabalhar com Adão lhe ensinaram a humildade e o esvaziar-se que geralmente são alcançados somente por monges solitários depois de muita disciplina.
Nouwen disse que durante toda sua vida duas vozes competiam dentro de si. Uma o  encorajava a alcançar sucesso e realizações, enquanto a outra o chamava a simplesmente descansar no conforto de ser o “amado” de Deus. Somente na última década da sua vida foi que realmente ouviu àquela segunda voz.
No fim, Nouwen concluiu que “o alvo de educação e formação para o ministério é continuamente reconhecer a voz do Senhor, sua face, e seu toque em cada pessoa que encontramos”. Ao ler esta descrição no seu livro Gracias!, entendi por que ele não considerou perda de tempo convidar um estranho para morar consigo por um mês, ou dedicar duas horas por dia para cuidar manualmente de Adão.
Vou sentir falta de Henri Nouwen. Para alguns, seu legado consiste nos seus numerosos livros, para outros era seu papel como ponte entre católicos e protestantes, e para outros sua carreira distinta como professor nas universidades famosas do Ivy League (como Harvard, Princeton e Yale). Para mim, porém, uma única imagem capta melhor a sua pessoa: a do sacerdote enérgico, cabelos desarrumados, usando suas mãos inquietas para criar e modelar uma homília como se estivesse tirando do nada, celebrando uma eucaristia eloqüente para o aniversário de um homem infantil, incapaz de reagir, e tão deficiente que a maioria dos pais o teria abortado, se tivesse chance. Um símbolo melhor da Encarnação, seria difícil imaginar."

Philip Yancey - Revista Impacto, 29 de Novembro de 2011.


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