segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Por que eu deveria derramar lágrimas

Não sou uma pessoa que chora com naturalidade e, em geral, consideram-me forte. Fui educado na Rugby School, uma daquelas famosas escolas “públicas” em que se aprende a filosofia da casca grossa, isto é, não se deve demonstrar qualquer emoção.

Porém, li os evangelhos e descobri neles o registro de que Jesus, nosso Senhor, chorou em público duas vezes: uma por causa da falta de arrependimento da cidade de Jerusalém (Lc 19.41) e outra por causa do sepultamento de Lázaro (Jo 11.35).

Deste modo, se Jesus chorou, seus discípulos presumivelmente poderiam fazê-lo. Mas por que eu deveria derramar lágrimas? Não estava diante da falta de arrependimento nem da morte. Estaria eu afundado na autocomiseração, sob a perspectiva de uma lenta recuperação? Estaria lamentando minha queda e fratura? Estaria vislumbrando ali o fim do meu ministério? Não, na verdade eu não tive tempo de colocar meus pensamentos em ordem.

Tive uma experiência semelhante de lamento com meu amigo John Wyatt, que é professor de ética e perinatologia no hospital-escola da Universidade de Londres, e que se tornou famoso por defender a inviolabilidade da vida humana em debates públicos sobre aborto e eutanásia. Quando ele me visitou no hospital, compartilhamos nossas experiências de fragilidade e dependência e ambos chegamos às lágrimas. Eis a forma como ele descreveu essa situação:

“Nos primeiros dias depois da cirurgia, John Stott foi acometido por episódios de desorientação e por distintas e alarmantes alucinações visuais. Além disso, havia a inevitável humilhação de receber os cuidados da enfermagem, e a preocupação com o futuro. Enquanto estávamos no hospital, conversando e compartilhando, lembrei-me da minha própria experiência de doença e caos, alguns anos antes. Lembro-me que estávamos em lágrimas, dominados por um poderoso sentimento comum de vulnerabilidade e debilidade humana. Foi uma experiência dolorosa, mas libertadora”.

A seguir a segunda e semelhante experiência, dessa vez com a contribuição de Sheila Moore, minha fisioterapeuta e amiga:

“Foi logo após o retorno para casa, depois de sua convalescença. Stott havia acabado de voltar para descansar em uma cadeira, quando, de repente, estremeceu e suspirou profundamente. Fui ver se ele se sentia mal e percebi que as lágrimas fluíam livremente. Ele estava vivenciando uma arrebatadora liberação de toda a carga emocional e dos desafios dos eventos recentes, que ele havia pacientemente suportado sendo “um paciente”. Não há palavras a serem ditas durante uma experiência tão profunda — somente uma empatia e uma confortante mão firme em seu ombro. Pouco a pouco, enquanto a emoção cedia, assegurei a ele que não se tratava de uma experiência incomum em tais circunstâncias, e que as lágrimas são um alívio e uma forma de cura muito valiosa”.

Essa experiência completamente “inusitada” aconteceu repentinamente; foi uma surpresa que causou certo choque e dor emocional. Racionalizar tais experiências talvez seja difícil, especialmente para homens, que tendem a vê-las como uma humilhação. Porém, se encaradas com honestidade, podem ser um alívio maravilhoso. É muito valioso encarar aqueles momentos como uma preparação dada por Deus para as mudanças que se encontrariam à frente, e como um presente especial da parte dele.


John Stott
Texto retirado, com permissão, de O discípulo Radical, de John Stott, lançamento da Editora Ultimato, em março de 2011.
fonte: www.ultimato.com.br

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

As fogueiras do Reino

O melhor e mais importante de nossa história resulta dos planos que não deram certo. E esta é a descoberta que nos atordoa e redime.

Em um mundo de liberdades, o incerto e o imprevisível criam o espaço mais doloroso, e mais rico. Naquilo em que nos tornamos, somos desenhados, com uma freqüência surpreendente, pelas linhas oblíquas de nossos projetos frustrados.

Ele desfila expectativas, propósito e determinação nos caminhos que inauguram seu Reino. É possível ver em seus olhos o foco intransigente de quem acredita com força e urgência em sua utopia. E para toda utopia há uma estratégia tão rigorosa quanto crédula. O Reino virá agora, eis sua paixão. Israel, reinventado, inaugurará a política que salvará o mundo e a Torá, reinterpretada, encantará as nações da Terra. Para uma nova política, um novo rei. Para uma nova religião, uma nova pedagogia.

A fé encontrará novos sentidos, frutos de uma leitura imaginativa e de uma pedagogia que dialogará com o mundo concreto. As parábolas recontarão a história da humanidade.

O tempo é fermentado pelos que tem fome e sede de justiça. Os que choram inspiram uma nova pregação. Os pobres enfileiram os que tomarão com a força de sua necessidade o destino dos povos. Os mansos darão o ritmo dos que sobreviverão para herdar a Terra. Eis o novo Reino e sua bem-aventurança!

Só esta ingênua determinação explica o deslize deselegante com aquela desgraçada. Desesperada, mas sirofenícia. E este era seu defeito. Persegue Jesus e os discípulos aos gritos. Fresca na memória a advertência de que sua missão era com os filhos de Israel, aqueles pedidos incomodam mais do que deveriam. Mas a mulher teima como insistente é sua tragédia. Tem uma filha possuída pelas forças do mal. Seu grito é finalmente silenciado por uma truculenta, mas previsível resposta. O pão da mesa é dos filhos e não dos cachorrinhos.

Os que não carregam a oportunidade estratégica da etnia terão sua vez, mas não agora. Ele acredita que um novo mundo virá depois de uma nova etnia. Mas a réplica de uma mãe histérica é a fissura inevitável na lógica encantada pelo grande plano. Os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa. Logo se descobrirá que aquela piedosa mesa, tão fartamente servida, jamais saciará. O sentido da revolução pretendida por Jesus não será o do farto pão à mesa, mas o das involuntárias migalhas. Do chão dos esquecidos. Dos que carecem. Dos que estão à margem. Só eles poderão entender o evangelho. As migalhas no chão saciarão mais que o pão na mesa.

Aquele instante é ainda a réstia da grande luz, que iluminará pela dor da decepção um novo horizonte para seus empenhos.

Não foi preciso muito tempo para ver seus planos esbarrarem nas estruturas adoecidas da política e da religião e descobrir seu projeto como remendo novo em pano velho, vinho novo em odres velhos. Assistir àquele a quem mais se admira com a cabeça presenteada em uma bandeja de prata expôs a desproporcional força e patética dos que amam o poder. Os espaços do mando sempre guilhotinam os que não vestem suas máscaras.

Ser amado pelo pão que multiplica em detrimento da injustiça que subtrai custou o desencontro insuperável com as multidões. Convergir adeptos é sempre distorcer sentidos.

Assistir aos seus gestos de misericórdia agredirem os escrúpulos dos que frequentam o templo mostrou-lhe as vendas religiosas que cegam a fé. Sempre que um dogma precisa ser salvo, um aflito acaba esquecido.

Estes foram os dias da grande decepção. Aqueles que jamais terminaram de tão definitivos para o evangelho de Jesus. A eles deve ter se referido João quando retratou a história do Filho de Deus. Veio para os seus, mas os seus não o receberam. E a todos os que o receberam deu-lhes o direito de serem chamados filhos de Deus. Desde os dias funestos, não se viu mais Jesus nos mesmos lugares. A casa do pecador tornou-se seu espaço de comunhão. Todos foram para o templo, mas ele foi visto em um lugar estranho, nos pavilhões indesejados do Tanque Betesda. Ao escapar das multidões e seus desencontros, a casa de um maldito, o publicano Zaqueu, tornou-se a sua. Sua fama agora é de quem gosta das festas, com suas comidas, bebidas e gente despretensiosa e livre.

Na cruz morre um homem porque não quis ser o que seu mundo lhe impôs. Mas também, e na mesma cruz, morre o homem que Jesus nunca foi. Termina na cruz, porque é assim que se faz com os que destoam. Termina na cruz a imagem colada pelos seguidores em seu líder. Talvez apenas este paradoxo explique o estranho fenômeno de desconhecimento que acompanhou os dias do Cristo ressurreto entre os mais íntimos.

Maria o confundiu com um jardineiro atrevido, provável responsável pelo sumiço do corpo do Mestre amado. Os discípulos de Emaús o confundiram com um judeu mal informado sobre os acontecimentos de Jerusalém. Os discípulos o tomaram por uma ameaça ao refúgio para os perigosos dias que seguiram sua morte. Os que mais o conheceram não conseguiram reconhecê-lo. Não será porque o Cristo glorioso, aquele do grande plano, fora desconstruído rumo à morte na cruz? E este, que agora vêem, não será aquele que não conseguiram, mas deveriam, enxergar o tempo todo?

Naquele dia o mar não estava para peixes. Nada muito novo na árdua tarefa dos que pescam. Ele caminha na praia como quem espera ansioso pela volta dos que deveriam trazer os peixes. Aflito, sem poder esperar mais, vê os pescadores voltarem aos poucos com os barcos vazios. De longe ainda, pede peixe. Ninguém o reconhece. Antes que desistam totalmente da pesca, ele fala como quem sabe e aponta aonde entende que os peixes estão.

Pescadores desapercebidos lançam as redes e, finalmente, o reconhecem. Quem sabe depois de Pedro se lembrar de outra pesca prodigiosa orientada pelo Rabi? É Jesus? Mas é outro. Mas é Jesus. Pula do barco e, às braçadas, desliza saudoso em direção ao não mais tão estranho assim. Na areia, as brasas já assam alguns peixes e pães. O cheiro doce da comida dissolve apreensões. Um a um, todos chegam, sentam-se e comem. A comida espalha endorfina e relaxa o corpo outrora teso e o calor da fogueira espanta o frio doído da brisa que já sopra no fim do dia. Logo a adrenalina daqueles dias dá lugar ao prazer, as palavras antes engasgadas, ficam fluidas e os sorrisos, tão raros ultimamente, retornam fáceis.

Encantado observo, mesmo que inseguro. A cena é constrangedora, mas também é a indicação de um livramento. O Reino do Cristo está ali, aquecido por aquela fogueira, feito de uma gente despida de qualquer imponência ou virtuosismo. Pondero abismado enquanto passo os olhos no grupo. O líder, alguém que acabou de passar por uma terrível humilhação pública. A multidão desistiu dele e de seu fosco projeto de Reino. Pedro, não conseguiu ser leal na hora mais aflita do anunciado, mas desprestigiado amigo. Os Filhos de Zebedeu, João e Tiago, brigaram por espaço e pompa até há pouco. Nós, os demais, dispersamos confusos e amedrontados no momento mais tenso da trajetória. E há um terrível vácuo, uma ausência amarga, um companheiro, antes tão presente, não está mais ali. Ele preferiu desistir da vida a encarar sua fraqueza. Amigos precários, mas amigos. Reunidos pelo breve e fugidio tempo de uma brasa. Sagrando os afetos com comida e conversa. Este é o Reino. Este é o evangelho que contagiará inalcançáveis almas.

Barriga cheia. Conversas fartas de memórias. Cristo chama por Pedro. O nome destacado na roda poderia indicar um grave e adiado acerto de contas. Ainda pairam dúvidas. Ao contrário do que poderia se imaginar, Jesus não pede explicações pelos tropeços, nem suscita grandes promessas para novas e também grandes expectativas. Não oportuniza um pedido formal de perdão. Ah! Nossos ritos de perdão! Fragmentos do grande plano. Pedimos perdão como quem pode retomar a fantasia de não mais frustrar. Perdoamos e iludimos novamente nosso coração com a panacéia de amigos que não decepcionam. Mas nada disso acontece ali. A pergunta é tão singela e quente e saborosa quanto à comilança em torno da fogueira. A brasa crepita e pausa os assuntos. Pedro, você me ama? A resposta é tímida, mas fluente. Você sabe que te amo! Pergunta e resposta se repetem como em um diálogo dramático. Num só lance e roubando o fôlego. E aos três movimentos modestos e teatrais de amor, um pedido despretensioso se segue: cuida das minhas ovelhas. E todos respiram aliviados.

Desde então, sempre que homens e mulheres se reúnem para comer e beber e conversar, esquecem-se das grandes utopias e suas perversas expectativas, tornam-se mais amigos e amantes, cuidam-se como pastores de suas ovelhas e Jesus volta e seu Reino e seu Deus.


Elienai Cabral Juni

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A sanidade e seu mistério

O misticismo mantém os homens sãos. Enquanto tiver mistério você terá sanidade; quando destrói o mistério, você cria morbidez. O homem comum tem sido desde sempre são, porque o homem comum tem sido desde sempre um místico. Ele tem se permitido a luz do crepúsculo. Tem mantido um pé na terra e outro no país das fadas. Tem sido sempre livre para duvidar dos seus deuses; porém (e ao contrário do agnóstico de hoje), livre também para crer neles. Tem dado sempre maior valor à verdade do que à consistência. Quando vê duas verdades que parecem se contradizer, fica com as duas verdades e junto com elas abraça a sua contradição. Sua visão espiritual é estereoscópica, do mesmo modo que sua visão física: ele vê duas imagens diferentes ao mesmo tempo e enxerga melhor por essa mesma razão [...] Todo o segredo do misticismo é esse: que o homem é capaz de compreender todas as coisas pelo auxílio daquilo que não compreende.


Chesterton,
em sua Ortodoxia

O monastério é o mundo

Como se sabe, Weber argumentou que a Reforma Protestante abriu caminho para o capitalismo através de uma completa alteração das crenças e hábitos diários da vida. Weber mostrou-se particularmente interessado em Calvino e no calvinismo, pois encontrou neles o processo pelo qual as disciplinas monásticas – o dia ordenado de trabalho, a vida frugal, o ascetismo, a autonegação, o chamado para a vida religiosa, o individualismo, a predestinação, a dependência da graça por parte de seres humanos inteiramente incapazes de qualquer bem eles mesmos porém constantemente impelidos às boas obras em resposta à graça – deixaram os monastérios e alcançaram a população em geral.

Esses ritmos da vida diária mostraram-se cruciais na transição entre os padrões medievais e aqueles mais adequados ao capitalismo. Embora Lutero tenha tomado o primeiro passo na desconstrução do monasticismo medieval, a contribuição de Calvino foi fazer deste mundo um lugar de teste e de preparação para a vida em outro mundo que ainda não pode ser conhecido. A vida diária tornou-se cenário de uma racionalização sem precedentes, na qual cada momento estava sujeito a ordenação, escrutínio e prestação de contas.

O paradoxo aqui está em que Calvino não tornou a vida humana menos religiosa: ao contrário, a vida humana como um todo tornou-se um monastério. Porém foi precisamente essa ampla religionização que gerou tanto as possibilidades do capitalismo quanto o fim do protestantismo calvinista como tal. Porque, ao sacralizar a vida como um todo, Calvino também a racionalizou; ao colocar em andamento essa estirpe secular de ascetismo, deixou de haver qualquer necessidade para a perpetuação de algum conceito religioso. Um ascetismo puramente secular tornou-se o resultado lógico da teologia de Calvino, que pode então ser descartada, uma vez que já cumpriu sua missão. O calvinismo protestante funciona portanto como um agente catalisador que desaparece uma vez que tenha cumprido a sua tarefa.


Roland Boer,
em Political Grace: The Revolutionary Theology of John Calvi

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A face do necessitado é a face de Cristo

Era uma reunião comum, porém com certa formalidade. Apenas os homens estavam na sala, entre eles Jesus, Simão, o leproso, e Lázaro, o que havia sido ressuscitado. Eles eram servidos por Marta, pessoa conhecida por sua diligência quanto aos deveres domésticos. As mulheres não podiam sentar-se à mesa com os homens, elas não eram dignas disso, pelo menos era o que se achava. Abruptamente entra uma mulher na sala, não vem carregando uma bandeja com quitutes ou bebida, mas um vaso feito de um material precioso. Dentro do vaso há um perfume caríssimo, coisa que qualquer trabalhador demoraria um ano pra comprar. Ela quebra o vaso e derrama todo o perfume nos pés de Jesus, depois enxuga com os cabelos.

Os convivas logo reprovam a atitude da mulher. Ela quebrou as regras que impedem as mulheres de participarem das reuniões masculinas. Também, segundo os homens da sala, cometeu um grande desperdício, porque aquele perfume poderia se vendido e o dinheiro dado aos pobres. Maria, esse era o nome dela, Maria de Betânia, ainda de cócoras, é achincalhada pelos comensais, sente-se ainda mais indigna.

Jesus, que sempre toma o partido dos fracos, ele mesmo assumiu a fragilidade humana para si, acolheu Maria e a elogiou. O discípulo que a repreendeu parecia ético e preocupado com os pobres, mas era mentira, ele queria mesmo era posar de bom moço usando como pedestal a frágil mulher. Mas aquele que consegue discernir as intenções do coração o repreendeu e resgatou a dignidade da mulher. A intenção dela era pura e sua ação também era correta. Ela quis cuidar de Jesus, que estava prestes a sofrer sua paixão. Maria expressou o amor a Jesus através do seu cuidado. Grata que era por ser amada pelo Senhor, quis cuidar dele num momento crucial.

Conheço muita gente que diz ser grata a Jesus e que o ama. Pois bem, há infinitas oportunidades de expressar esse amor. Há muitos cristos por aí para que derramemos nossos cuidados aos seus pés. São os que têm fome, os que estão doentes, os que estão presos, os marginalizados. São também aquelas pessoas que precisam de uma ajuda para conseguir uma profissionalização, uma orientação jurídica, uma consulta médica. São aqueles que precisam de um momento de descontração no meio de uma implacável vida de pobreza. São crianças que estão num abrigo ou aquelas que, mesmo em suas famílias, aguardam o Papai Noel no dia 25 de dezembro, e ele insiste em não aparecer.

Jesus disse que o que fizermos a um desses seus menores irmãos, a ele o fazemos. Se amamos a Cristo, está na hora de expressar nosso amor através do cuidado, enxergando Sua face na face do oprimido, do marginalizado, do pobre e do necessitado. Por outro lado, se desprezarmos aqueles que precisam e a quem podemos ajudar, não é só a eles que desprezamos, mas também ao próprio Cristo e mentimos quando dizemos que amamos a Deus.


Márcio Rosa da Silva

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A vida é a arte do encontro

Vinicius de Moraes foi quem disse a frase do título no meio do Samba da Benção, linda canção do poeta e diplomata. Ele ainda completou dizendo: “embora haja tanto desencontro pela vida”. A vida só faz algum sentido por conta de nossos encontros e desencontros.

Quando criança tudo o que se quer é o conforto do colo materno, a segurança do abraço paterno e a alegria dos momentos fraternos descontraídos. Sair correndo para abraçar o pai, a mãe ou mesmo o tio na porta da escolinha é uma celebração. A celebração do encontro. Cedo aprendemos a celebrar esses momentos mágicos e cheios de afetos que são os encontros com os que amamos.

A adolescência chega e já não se quer a presença tão próxima dos pais, agora o encontro é outro, o primeiro amor, a primeira paixão. Ah, como é esperada a hora de ir para escola para ver a garota que faz sentir um frio no estômago, os batimentos cardíacos acelerarem e a boa secar. O primeiro amor é celebrado num mundo que se revela pleno de sentimentos. Mas como há tantos desencontros pela vida, na maioria das vezes aquele primeiro amor se desfaz e o mundo desaba. Mas outros virão.

Amigos, os encontros que duram a vida inteira. Como são raros, mas como são preciosos. O bom amigo não cobra a sua presença, mas parece estar sempre presente. Sabe se ausentar quando necessário e sabe estar presente quando se precisa dele. Mesmo quando se distanciam e ficam anos sem se falarem pessoalmente, quando se vêem os verdadeiros amigos celebram, sem cobranças, e continuam a conversa de onde tinham parado da última vez que se viram. É uma pena que haja distanciamentos, que amigos se afastem, e, às vezes, virem até inimigos.

E quando achamos uma pessoa a quem amamos e que nos ama também e percebemos que queremos estar com aquela pessoa todos os dias, a vida inteira? Que coisa fantástica. Daí a vida é só encontro. Nem sempre dá certo, mas vale à pena tentar.

Em meio a todos os encontros e desencontros, há Um que deseja se encontrar conosco, mas insistimos em pegar rotas outras. Ainda bem que Ele está em todos os caminhos. Bom é ter sensibilidade para perceber no sorriso carinhoso da criança, no olhar embevecido do apaixonado, no abraço afetuoso do pai e no colo sempre disponível da mãe, além de um momento especial com as pessoas que amamos, um encontro com Aquele que nos ama. Deus é amor. Se nossos encontros são celebrações de amor, também são reveladores da sutil presença dEle.

Eu sei, às vezes parece que Ele é quem se afastou de nós. Até o crucificado perguntou o porquê do abandono. Mas são momentos em que é necessário estar só. Acredite, eles são necessários. Bom é saber que chegará o dia em que nosso encontro com Ele será definitivo e não haverá mais desencontros.

Até lá, vamos fazendo nossa vida ter sentido nos aprimorando na arte do encontro.


Márcio Rosa da Silva

Encontros e Despedidas

Todo ano é assim, quando chega o momento de ir embora não dá para segurar as lágrimas, o nó na garganta, a tristeza. Abraços apertados e demorados, sentidos. Frases curtas, voz baixa, embargada, e rostos banhados. Quando fui abraçar e beijar a minha avó, como sempre eu me despeço dela por último, meu rosto molhado tocou o rosto molhado dela. Encontro de lágrimas, encontro de dores, uma saudade antecipada, um sofrimento que se antevê. A dor da despedida.

Uma semana antes o clima era outro. Os abraços eram apertados, mas festivos. Em vez de voz embargada, todos falando alto, exaltados, entusiasmados. Risos, gargalhadas. Era o clima do reencontro, da chegada, o desaguar da saudade em presença.

Melhor seria se não houvesse despedidas. Talvez não ir visitar os queridos, para não ter que se despedir deles. Mas para me privar da dor da partida, me privaria também da alegria do encontro. Se quisesse evitar a dor do abraço de despedida, também não teria o festivo abraço da chegada. Prefiro enfrentar a aguda tristeza do beijo banhado de lágrimas do que jamais sentir a alegria do abraço carregado de afeto e saudade represada do reencontro.

Já se disse que viver é aprender a se despedir. A vida é feita de ciclos e também de despedidas. A criança que tem de abandonar as coisas pueris, porque está ficando grandinha. O adolescente, que ainda sem ser adulto, tem que deixar as coisas de criança. O adulto que tem assumir todas as responsabilidades da vida e se desprender das coisas de adolescente. Os pais que vêem os filhos indo embora depois de adultos. Os velhos, que têm que aprender a se despedir de tudo e sabem que também terão que se despedir da vida. Despedidas. Em cada uma delas, os sentimentos de que falei no início estão presentes.

A única coisa que me consola em despedidas é a esperança. Quando me despeço da minha mulher com um beijo, no início do dia, o que me alegra é a esperança de encontrá-la mais tarde para celebrarmos, de novo, a presença um do outro. Todo ano, quando choro abraçado com minha avó, consolo meu coração com a esperança do reencontro. Quando um ciclo da vida é encerrado, há a possibilidade de novos horizontes, de um novo ciclo.

Por outro lado só houve despedida porque antes houve um encontro. Para aprender a me despedir também preciso aprender a celebrar intensamente os momentos. Só chora a despedida quem celebra o encontro. Se a despedida é indolor, também a presença é irrelevante. E se a despedida é temperada com esperança, haverá dor, mas não desespero.


Márcio Rosa da Silva

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Sentimentos e impressões sobre Lausanne 3

Lausanne 3 se encerrou há quase um mês, mas o assunto em torno das mesas continua o mesmo. A pergunta que mais ouvi nestes dias foi: "O que achou de Lausanne 3?". Por isso, creio que não posso deixar Cape Town sem fazer esta reflexão final, mesmo que a considere ainda em construção. Assim, meus sentimentos e impressões sobre esta conferência tão importante para a vida e a missão da igreja na década que se inicia são os seguintes:

1. Lausanne 3 não foi uma conferência de grandes preleções e profundos conceitos.

Pessoalmente, vim para Cape Town 2010 na expectativa de encontrar reflexões profundas sobre temáticas contemporâneas e desafiadoras para a missão da igreja como: meio ambiente, pós-modernidade, movimento neo-pentecostal, homossexualidade e crise econômica mundial. No entanto, a conferência não apenas não abordou estas temáticas como fez uma opção metodológica que incentivou grandemente a superficialidade nos assuntos tratados.

Deixe-me explicar o que quero dizer por opção metodológica. Por uma lado, creio ter sido interessante a proposta de fazer uso de três ou mais preletores, testemunhos e apresentações multimídias para apresentar diferentes perspectivas acerca de um mesmo tema. No entanto, esta mesma proposta não contribuiu efetivamente para o aprofundamento dos temas tratados e sub-utilizou pessoas como Os Guinnes, John Piper, Tim Keller, Chris White, René Padilha e Samuel Escobar. Consequentemente, Lausanne 3 não foi uma conferência de preleções arrebatadoras.

2. Lausanne 3 foi uma conferência em que latino americanos (e brasileiros) ficaram à margem.

Em Cape Town 2010 foi nítida a não contribuição latino-americana na construção da agenda e do conteúdo da conferência. Ficou evidente o equilíbrio intencional entre preletores Asiáticos, Africanos, Europeus e Norte-Americanos. No entanto, os latino-americanos não foram inseridos nesta proposta de equilíbrio intencional, ficando na periferia da conferência. Creio que isso aconteceu, em parte pelo preconceito e descaso daqueles que organizaram a conferência. Por outro lado, ficou evidente a falta de articulação e mobilização por parte das igrejas latino-americanas.

3. Lausanne 3 foi uma conferência na qual a igreja global chorou pela igreja pobre e perseguida.

Preciso reconhecer que Cape Town 2010, em alguns momentos, me surpreendeu grandemente. O testemunho daqueles que são desprovidos dos recursos que temos no Brasil e que estão inseridos num contexto de grande risco e perseguição me sensibilizou, para não dizer explicitamente: me fez chorar. O que homens e mulheres, como discípulos de Jesus, estão fazendo sem recursos e liberdade deve nos mover a repensar nossa espiritualidade “light” e tão pouco engajada na transformação de vidas e da sociedade brasileira.

4. Lausanne 3 foi uma conferência onde a Missão Integral foi celebrada através dos testemunhos.

Cape Town 2010 me surpreendeu foi que, apesar de não ter encontrado discursos profundos e bem elaborados sobre a missão integral, ouvi testemunhos de muita gente, simples e anônima, mas engajada na missão integral da igreja, anunciando a salvação somente em Jesus e promovendo atos de amor e compaixão pelos menos favorecidos em suas culturas. Logo, a teologia da missão integral da igreja não foi refletida e elaborada, mas com certeza foi anunciada e celebrada.

Assim, deixo Cape Town 2010 com o sentimento de que precisamos fazer melhor uso dos recursos e da liberdade que desfrutamos em nosso país. Além disso, precisamos abrir nossos olhos, ganhar consciência e nos mover na direção daqueles irmãos e irmãs em Cristo que sofrem pela fé cristã em muitos lugares no mundo. Por último, precisamos orar para que Deus sopre sobre a igreja brasileira um espírito de maior unidade, cooperação e mobilização.


Ricardo Agreste

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Proclamando o Reino de Deus: Jesus é Senhor

O cerne da mensagem e do ministério de Jesus residia na proclamação do reino de Deus. Do mesmo modo, o reino deveria ocupar posição central na proclamação e na natureza da igreja contemporânea. “Proclamar o evangelho da aurora do reino é o primeiro e mais importante elemento na missão de Jesus, na missão do Espírito e na missão da igreja”.

Grande parte da teologia que tem exercido maior influência sobre a igreja ocidental tem negligenciado a centralidade da mensagem do reino. Isso é resultado de uma leitura das cartas de Paulo que as remove de seu contexto histórico e as separa do evangelho de Jesus. A igreja segue Jesus, não os líderes do estado nacional. Quando entendida de forma adequada, a linguagem de Paulo, embora diferente da linguagem de Jesus, está firmemente enraizada na perspectiva do reino, e não faz sentido fora dela. Jesus proclamou o reino, e Paula proclama Jesus – isso porque Jesus é, ele mesmo, o rei. A igreja que proclama o reino de Deus é a igreja que proclama o senhorio de Jesus. Paulo, em conformidade com o restante do Novo Testamento, afirma enfaticamente que Jesus, e não César, é Senhor.

A proclamação do senhorio de Jesus por parte da igreja, no entanto, só fará sentido quando a igreja se recusar a reconhecer quaisquer outros senhores. Isso quer dizer que o senhorio de Jesus será revelado ao mundo quando os cristãos se desapegarem dos ídolos do consumismo, dos ídolos da cultura e dos ídolos das democracias liberais ocidentais. A igreja segue Jesus, não os líderes do estado nacional. A igreja adora Jesus, não os ídolos do capitalismo. A igreja proclama o senhorio de Jesus abandonando os modelos culturais de segurança e passando a viver pela fé. A igreja proclama o senhorio de Jesus doando em vez de arrecadar. A igreja proclama o senhorio de Jesus recusando-se a perpetuar os ciclos de pecado e de morte e rompendo os ciclos de pobreza, de força, de alienação e de abandono.

Porque Jesus, e só Jesus, é Senhor, a igreja deve viver uma relacionalidade aberta definida por prodigalidade, promoção da paz, irmandade e intimidade. Do mesmo modo, como Jesus é declarado Senhor de todos, Senhor do universo, a proclamação cristã do senhorio de Jesus deve levar a sério a relação entre a humanidade e o resto da criação. Preocupações ambientais e ecológicas estão por essa razão intimamente ligadas ao evangelho do reino. A proclamação do reino interrompe os ciclos de poluição que tratam a terra como propriedade da humanidade, e leva os cristãos a viverem uma relação simbiótica com a terra – que não pertence à humanidade, mas a Jesus.


Daniel Oudshoorn

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Proclamando o perdão dos pecados

Com demasiada frequência a igreja contemporânea, em vez de anunciar o perdão, tem proclamado uma mensagem de julgamento e condenação. A ironia está em que, ao engajar-se nessa proclamação e ao abandonar o chamado cristão à proclamação do perdão, a própria igreja experimenta a ira e o julgamento de Deus. A igreja ocidental tem anunciado o julgamento, e fazendo assim tem se postado debaixo do julgamento de Deus.

Porém todas essas, a proclamação da narrativa do evangelho, a proclamação da trindade e a proclamação do reino de Deus encontram sua expressão mais completa na proclamação do perdão dos pecados. A declaração “seus pecados estão perdoados” faz pouco sentido na situação contemporânea. A recusa a deixar de sofrer é o coração do perdão cristão.Tanto pecado quanto perdão são conceitos alienígenas. Porém, mais do que nunca, a igreja é convocada a proclamar o perdão dos pecados. É o perdão dos pecados que revela o reino, que revela que o exílio terminou, que Deus em Jesus Cristo e em seu Espírito veio para perto de nós.

A igreja revela o significado dessa proclamação vivendo como comunidade perdoadora e perdoada. Aqui, como com todas as outras proclamações, é a existência de uma igreja que vive e crê nessa proclamação que age como única explicação (hermeneutic) do que está sendo proclamado. Essa proclamação é essencialmente anti-pragmática. A igreja das estratégias missionais centradas no crescimento e das estratégias sociais centradas na erradicação de todo o sofrimento não consegue enxergar isso. Ao anunciar o perdão dos pecados a igreja adentra o sofrimento do mundo, tomando sobre si os pecados do mundo a fim de levá-los para longe. Essa recusa a deixar de sofrer é o coração do perdão cristão.

Em última instância, é essa proclamação do perdão dos pecados que não permite que a igreja seja subvertida por forças externas. A abertura ao sofrimento, a comunidade de amor radical e a pessoa e o senhorio de Jesus são todos revelados nessa proclamação. É por essa razão que a igreja que proclama o perdão dos pecados sofrerá perseguição. É essa proclamação que se mostrará sempre impalatável para todos os poderes, que irão por essa razão buscar corrompê-la ou aboli-la. O quanto a igreja permanece fiel a essa proclamação representa o teste definitivo do quanto ela permanece fiel à sua linguagem e à sua narrativa.


Daniel Oudshoorn

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Embora seja noite

Bem eu sei a fonte que mana e corre
Embora seja noite.

Aquela eterna fonte está escondida
mas sei bem d’onde é suprida
embora seja noite.

Sua origem desconheço, pois não a tem
mas sei que toda origem dela vem,
embora seja noite.

Sei que não pode haver coisa tão bela
e que céus e terra bebem dela,
embora seja noite.

Sei bem que fundo nela não se acha,
e que ninguém pode atravessá-la,
embora seja noite.

Sua claridade não é nunca escurecida
e sei que sua luz toda já é vinda,
embora seja noite.

Sei ser tão caudalosas suas correntes
que regam céus, infernos e as gentes,
embora seja noite.

A corrente que nasce desta fonte
sei que é forte e onipotente,
embora seja noite.

E das duas a corrente que procede
sei que nenhuma delas a precede,
embora seja noite.

E esta eterna fonte está escondida
neste vivo Pão pra dar-nos vida,
embora seja noite.

Aqui ela está chamando as criaturas
e se fartam desta água, ainda que às escuras
porque é de noite.

Esta viva fonte que desejo
neste Pão de vida a vejo,
embora seja noite.


São João da Cruz (1542-1591)
o frade espanhol que dizia que somos aquilo que amamos

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Agora um pouco de Juan Luis

Por minha ressurreição eu envio o meu Espírito… A partir de agora, nunca mais como antes acalmarei a tempestade. Mas o meu Espírito a acalmará quando vós tiverdes construído navios capazes de suportar as ondas. Nunca mais tornarei a alimentar multidões no deserto, mas o farei quando o meu Espírito criador vos tiver levado a aperfeiçoar os solos a distribuir suas riquezas. E se nestas tarefas de amor sofreis, eu não posso evitá-o porque já não estou “entre vós”, mas “em vós”. Mais ainda, sou eu quem em cada um de vós sofro o mar tempestuoso e a fome. Exatamente como vós. Não vos embarquei numa aventura sem saber se o porto vale a travessia. A única garantia que posso vos dar é o ter-me embarcado definitivamente convosco.


Juan Luis Segundo

Um pouco de Andrés Queiruga

"Deus não faz coisa alguma ao nosso lado para nos completar, ou em nosso lugar, suprimindo-nos, mas faz com que nós façamos, pois sustenta nosso ser e agir. A ação parte da criatura, possibilitada pelo Criador. Assim, quanto mais faz Deus, mais fazem as criaturas, quanto mais as criaturas fazem, mais faz Deus. Onde a criatura falha, Deus também falha, porque desde que nos criou decidiu, livremente, nada fazer sem nosso acolhimento e aceitação."

"Na parábola do Bom Samaritano… Deus não pode forçar a liberdade. O sacerdote e o levita não acolhem o apelo divino. Só o samaritano se compadece. Nesse momento, Deus pode realmente salvar o ferido. O samaritano passou a ser a mão divino: sem ela, Deus “nada” poderia fazer. A ação humana nasceu do apelo divino e dEle recebeu seu ser, força e inspiração para agir… [Deus] sem intervir na autonomia do criado, interpela a liberdade e a autonomia, para que, sem quebrar a legalidade do mundo [possa agir]."


Andrés Torres Queiruga

Uma do Bonhoeffer

Nossa maioridade nos conduz a um verdadeiro reconhecimento de nossa situação diante de Deus. Deus quer que saibamos que devemos viver como quem administra sua vida sem ele. O Deus que está conosco é aquele que deserta de nós. O Deus que nos permite viver no mundo sem a hipótese funcional de Deus é aquele diante do qual permanecemos continuamente. Diante de Deus e com Deus, vivemos sem ele. [...] Deus é fraco e sem poder neste mundo, e essa é a precisamente a maneira, a única maneira pela qual ele está conosco para nos ajudar.


Dietrich Bonhoeffer

sábado, 1 de janeiro de 2011

Sonhos e utopias (im)possíveis

Morre mais um ano. Parecidíssimo com os demais, os meses desta década vieram marcados por tragédias que se misturaram com poucas alegrias. Rio de Janeiro e Haiti se misturaram às dores dos alagoanos. O sofrimento de tantos miseráveis clamou em alto e bom tom: a humanidade não pode esquecer-se de que o preço de um possível descontrole ambiental será altíssimo. O conflito iniciado pelo Ocidente, que tenta esvaziar a agenda fundamentalista muçulmana, parece não ter fim. Mais uma vez a história lembra que é mais fácil começar uma guerra que terminar.

Com a queda de alguns mitos da modernidade, o mundo padece de uma enxaqueca histórica. Não se acredita mais no progresso sem limite nem na agenda consumista do neoliberalismo. Sobrou uma ressaca, que imobiliza os ideais e as ações transformadoras da história; ressaca que alguns chamam de pós-modernidade. Se a alternativa da alienação não convém, parece que não há vigor para sonhar na reconstrução de outro mundo possível. Porém, sonhar é preciso. Nossos filhos e filhas não merecem herdar um mundo onde impera o desdém.

Trabalhemos pelo alvorecer de um novo dia em que os rios não poluam os oceanos; os peixes não morram asfixiados em águas podres; o raiar do sol seja menos abrasador, pois homens e mulheres conscientes restauraram as camadas estratosféricas porque adquiriram uma nova consciência ecológica. Aguardemos o dia em que novas leituras do Gênesis devolvam a humanidade à sacralidade do jardim e todos se comprometam a cuidar da criação, recompondo a natureza, que geme devido à insanidade do pecado.

Trabalhemos pelo despontar de um novo tempo em que se acabarão as fronteiras entre países, os muros étnicos e as cancelas rodoviárias; em que nos guichês de passaporte o pobre não seja impedido de procurar fugir de sistemas iníquos e o doente encontre o hospital que salvará a sua vida.

Trabalhemos pelo futuro quando espadas serão transformadas em arados. Procuremos ressignificar a esperança de que os bilhões de dólares gastos com armas e bombas sejam relocados em tratamento de esgoto, que aumenta a expectativa de vida de milhões de crianças. Repitamos: é possível acreditar que as fortunas desperdiçadas em cassinos sejam úteis em pesquisa pela erradicação da malária. Esforcemo-nos por esboçar outra realidade, em que se considera inadmissível uma bolsa custar mais que dois anos de salário de um operário.

Trabalhemos para que surjam muitas Madres Teresa de Calcutá em diversos continentes, todas empenhadas em acolher os moribundos. Sonhemos com mais profetas como Martin Luther King -- e que eles não sejam exceção rara. Concebamos que as penitenciárias políticas serão implodidas e que ninguém jamais seja preso por pensar diferente. Criemos um mundo em que os instrumentos de tortura se tornem peças macabras de museu e que não reste nenhuma ilha onde se maltrata outro ser humano em nome de ideologia, religião ou regime político.

Trabalhemos para que deixem de existir corregedorias, grampos telefônicos e espiões e que seja proibido bisbilhotar a privacidade das pessoas. Contribuamos para que o mundo se liberte das delações traiçoeiras contra o próximo. Convençamos os nossos filhos que é dever de todo homem e de toda mulher proteger o seu irmão. Esforcemo-nos para que os orfanatos não precisem manter as crianças por muito tempo porque as filas de adoção se multiplicaram; também, que os idosos nunca fiquem esquecidos em clínicas, à espera da morte.

Trabalhemos para que se multipliquem as orquestras e que os prefeitos construam coretos em todas as praças; e que as famílias se reúnam nos fins de semana para ouvir a apresentação vespertina de música. Não deveria ser considerado um delírio esperar que se projetem bons filmes em vilarejos e em cidades remotas. Oxalá bibliotecas ambulantes distribuam poesia para os tristes e boa literatura para os sonhadores; que escolas treinem bons malabaristas para a alegria das sextas-feiras e que mais trapezistas desafiem a gravidade nos picadeiros.

Trabalhemos para que os experimentos com células-tronco deem certo, e que muito em breve os tetraplégicos sejam curados e saltem como gazelas pela vida. Incentivemos quem trabalha no Projeto Genoma; e que eles terminem de mapear a estrutura da vida biológica para que se reduza o número de crianças com doenças genéticas.

Trabalhemos para que o turismo sexual seja banido e extinto entre os povos; que a pedofilia se torne um anacronismo; que se desarticulem os cartéis de droga -- o tóxico tem que parar de ceifar vidas, já que, um dia, pouquíssimas pessoas precisarão entorpecer a mente para tolerar a vida; os êxtases virão do encontro com a beleza, a bondade e a solidariedade.

Trabalhemos por um novo céu e uma nova terra. Todavia, reconheçamos que esse porvir não acontecerá enquanto a humanidade tolerar o pressuposto da sobrevivência do mais forte, ou da exclusão racial e da discriminação social. Optemos pelo legado de sabedoria que nossos pais nos deixaram, que nos convoca a construir a história. Incumbidos por Deus de promover o bem, represar o mal e disseminar a justiça, acreditemos que o futuro chegará de acordo com a semente que plantarmos no presente.

O futuro que ansiamos nascerá tanto de nossas mãos como de nossos ouvidos. Primeiro, ouçamos as verdades e os princípios eternos que Jesus nos ensinou. Depois, arregacemos as mangas. A vida espera por nós. Nossos filhos e netos não podem correr o risco de sermos negligentes ou apáticos. Qualquer hesitação pode redundar em desastre. Já é tarde!


Ricardo Gondim
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