quinta-feira, 29 de julho de 2010

Um quase cordel... uma quase graça...

Já vou cansado, nessa vida, de umas coisas.
Ver o sagrado sempre ser banalizado.
Não poucas vezes, sou eu mesmo quem o faço.
Faço da graça artigo bem barateado,
Tomando posse do que tem todo valor
Sem entender seu real significado.

Me incomoda, em muito, ver a insistência
De travestir-se em relativa a verdade.
Tendo em si pano-de-fundo humanista,
Numa maneira de fazer própria vontade,
Deteriora o valor do ser humano,
Dizendo estar a conferir dignidade

"Independência ou morte"!!!!

Ouve-se o grito de uma falsa liberdade!
Escravizados por nós mesmos, nós bradamos.
Sem "moralismo", "dogma", ou "religião",
Independentes a nós mesmos nos achamos.
Inconscientes de que com essa pretensão,
É a Seu eterno e imenso amor que abdicamos...


Gustavo da Hora
retirado do Ecos do Vale

domingo, 25 de julho de 2010

Por tão pouco

O Senhor ensina no evangelho: vigiai, permanecendo atentos contra toda malícia e cobiça. Guardai-vos de todas as ansiedades deste mundo e dos cuidados desta vida.

Portanto que nenhum dos irmãos, não importando para onde vá, leve consigo, receba ou tenha recebido qualquer forma de dinheiro ou de moeda, quer seja para vestuário, livros ou para o pagamento de qualquer trabalho – de fato, não por qualquer razão, a não ser por uma necessidade evidente de irmãos enfermos; porque não devemos de modo algum pensar que moeda ou dinheiro tenham utilidade maior do que pedras. O diabo quer cegar aqueles que desejam dinheiro e moedas ou consideram-nos melhores do que pedras. Nós, que abandonamos todas as coisas, tenhamos então cuidado para não perder o reino do céu por tão pouco.

Se encontrarmos moedas em algum lugar, não prestemos mais atenção a elas do que ao pó que pisamos com os pés, pois “vaidade das vaidades, e tudo é vaidade”. Se, por acaso e Deus não o permita, acontecer de algum irmão coletar ou carregar moeda ou dinheiro, a não ser pela supramencionada necessidade dos enfermos, que todos os irmãos passem a considerá-lo um irmão enganador, um apóstata, um ladrão, um assaltante e como aquele que levava a bolsa de dinheiro, a não ser que sinceramente se arrependa.

Que os irmãos de modo algum recebam, combinem de receber, coletem ou combinem de coletar dinheiro para colônias de leprosos ou moedas para qualquer outra casa ou lugar, e que não acompanhem ninguém que esteja pedindo dinheiro ou moedas para tal lugar. Porém os irmãos podem prestar para esses lugares outros serviços não contrários à nossa vida com a benção de Deus. Os irmãos podem pedir coisas que venham atender uma necessidade manifesta dos leprosos, mas devem tomar muito cuidado com o dinheiro. Semelhantemente, que todos os irmãos cuidem para não passar pelo mundo tendo como objetivo o sórdido lucro.


São Francisco de Assis, Regula non-bullata (1221)

sábado, 24 de julho de 2010

A nova transcendência

A história da humanidade é uma história de sujeições. No período pré-moderno, sujeição aos deuses do politeísmo, ao Deus do monoteísmo, ao Rei da monarquia e ao Povo (sujeito abstrato) da República. Havia sempre uma figura do Outro ao qual todos deveriam se reportar.

Esse Grande Outro prescrevia o certo e o errado, o bem e o mal, a graça e o pecado, a lei e o crime. O mundo se configurava de acordo com os preceitos do Grande Outro. As alternativas eram simples: sujeitar-se sob promessa de recompensa ou rebelar-se sob risco de punição.

Na modernidade, o Outro se multiplicou, adquiriu várias faces, descentralizou-se na diversidade de ideologias, sistemas de governo e crenças religiosas. Tanto a antiguidade quanto a modernidade nos remetiam à transcendência, ainda que fundada na razão. Se não era Deus, era o Partido, o líder supremo, as ideias inquestionáveis. Algo ou alguém nos precedia e determinava o nosso comportamento, incutindo-nos gratificação ou culpa.

A pós-modernidade, em cuja porta de entrada nos encontramos, promete fazer de nós sujeitos livres de toda sujeição. Seria a volta ao protagonismo exacerbado, em que cada indivíduo é a medida de todas as coisas. Já não se vive em tempos de cosmogonias e cosmologias, teogonias e ideologias. Agora todos os tempos convergem simultaneamente ao espaço reduzido do aqui e agora. Graças às novas tecnologias de comunicação, tempo e espaço ganham dimensão holográfica: cabem em cada pequeno detalhe do aqui e agora.

Será que, de fato, a pós-modernidade nos emancipa do transcendente e da transcendência? Introduz-nos no “desencantamento do mundo” apontado por Max Weber?

A resposta é não.

Há um novo Grande Outro que nos é imposto como paradigma inquestionável: o Mercado. As sedutoras imagens deste deus implacável são disseminadas por seu principal oráculo: a publicidade. À semelhança de seu homólogo de Delfos, nos adverte: “Dize o que consomes e eu te direi quem és”.

O grande teólogo desse novo deus foi Adam Smith. Inspirado na física de Newton, em “A riqueza das nações” e “A teoria dos sentimentos morais”, Smith aplicou à economia a metáfora religiosa do Grande Relojoeiro que preside o Universo.

O relógio funciona graças à precisão mecânica fabricada por alguém fora dele e invisível a quem o porta: o relojoeiro. Assim, na opinião de Newton, seria o Universo. Na de Smith, a vida social regida por interesses econômicos. A diferença é que o Deus Relojoeiro de Newton é chamado de Mão Invisível por Smith. Segundo este, o egoísmo de cada um, guiado pela Mão Invisível, promoveria o bem de todos…

É exatamente o que afirma Milton Friedman, líder da Escola de Chicago: “Os preços que emergem das transações voluntárias entre compradores e vendedores são capazes de coordenar a atividade de milhões de pessoas, sendo que cada uma conhece apenas o próprio interesse.”

Esse o fundamento do pensamento liberal e do sistema capitalista. É o principio do laisser faire, deixar (deus) fazer. O que, traduzido em termos políticos, significa desregulamentar, não apenas as esferas econômicas e políticas, mas também a moral. Abaixo a ética de princípios e viva a ética de resultados! Nesse protagonismo pós-moderno, cada ego é a medida de todas as coisas. O que imprime ao sujeito (no sentido latino de sujeição, submissão) a impressão de autonomia e liberdade.

O resultado do novo paradigma centrado no deus Mercado todos conhecemos: degradação ambiental; guerras; gastos exorbitantes em armas, sistemas de defesa e segurança; narcotráfico e dependência química; esgarçamento dos vínculos familiares; depressão, frustração e infelicidade.

Ainda é tempo de professarmos o mais radical ateísmo frente ao deus Mercado e, iconoclastas, apelarmos à ética para introduzir, como paradigma, a generosidade, a partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho, a felicidade centrada nas condições dignas de vida e no aprofundamento espiritual da subjetividade.

Isso, contudo, só será possível se não ficarmos restritos à esfera da autoajuda, das terapias tranquilizadoras da alma para suportarmos o estresse da competitividade, e nos mobilizarmos comunitariamente para organizar a esperança em novo projeto político fundado na globalização da solidariedade.

Eis o desafio ético que, como assinalou José Martí, será capaz de articular emancipação política e emancipação espiritual.


Frei Betto

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Mantendo cristã a proclamação cristã

Tudo isso leva ao que Jurgen Moltmann chama de “dilema entre identidade e envolvimento”. A igreja cristã está enfrentando uma crise de identidade e uma crise de relevância. Quanto mais busca abraçar uma identidade distintamente cristã, menos relevante ela se torna. Quanto mais busca ser relevante, mais perde sua distintiva identidade cristã. Um ocasiona a deterioração através de assimilação indiscriminada, São as atitudes da comunidade cristã que servem de intérprete para a mensagem cristã. o outro ocasiona a deterioração através de um recolhimento sectário.

Na busca para resolver esse dilema, este artigo propõe que a igreja se recuse a comprometer ou adulterar o evangelho. Em meio a Babel, a igreja deve continuar a proclamar uma mensagem que seja distintivamente cristã. Convicções cristãs devem ser expressas em linguagem cristã. A igreja, no entanto, deve também habitar a narrativa cristã. É essa habitação e incorporação da narrativa cristã que a torna compreensível (e talvez até mesmo atraente) para a sociedade. São as atitudes da comunidade cristã que servem de intérprete para a mensagem cristã. Dizer que os cristãos acreditam em Deus se manterá “verdadeiro mas pouco interessante” até que a comunidade assuma uma forma que revele o caráter do Deus cristão. A igreja, portanto, deve continuar a falar a linguagem do cristianismo. Fundamentando-se na história bíblica e na tradição cristã, a igreja será capaz de engajar-se numa conversação genuína e de dar continuidade à narrativa cristã, pois o cristianismo não é uma série de dogmas, mas uma história a ser finalizada.

Histórias é que são particularmente eficazes na tarefa de subverter ou modificar outras histórias. Como escreve Tom Wright, “diga a uma pessoa para fazer alguma coisa e você muda a vida dela por um dia; conte a essa pessoa uma história, e você muda a vida dela por completo”. Portanto, proferir linguagem cristã e incorporar a narrativa cristã deve ser a resposta da igreja para a presente situação. Ao manter-se um corpo gerador de histórias ela ganhará liberdade do torvelinho de narrativas que saturam a sociedade. Os profetas hebreus, de Moisés a Jesus, entendiam o poder único da linguagem e das narrativas. A cultura de Babel procura destruir a linguagem porque entende também que as realidades sociais podem ser renovadas pelo poder da palavra. Ao proferir a Palavra que é Cristo e ao encarnar a Palavra vivendo em Cristo, a igreja faz mais do que meramente reformar Babel, e começa a demoli-la por completo. Por essa razão a igreja que vive de modo profético permanece “intensamente preocupada com questões linguísticas e epistemológicas”.

Há quatro elementos dessa linguagem e modo de vida cristãos que merecem ser examinados em maior detalhe. O primeiro é a pessoa de Jesus; conhecer a narrativa de Jesus deve ser o primeiro passo para qualquer coisa que seja genuinamente cristã. O segundo é a compreensão única de Deus revelada pela teologia trinitariana. O terceiro é o coração do cristianismo missional, encontrado no Reino de Deus, e o quarto é a anunciação do perdão dos pecados. Essa proclamação com quatro aspectos apresenta os elementos particularmente cristãos e teológicos que são rapidamente abandonados quando a igreja tenta falar a linguagem da cultura, passando a colocá-los numa posição central – de onde não deveriam ter saído.


Daniel Oudshoorn

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Deus libertador

O que a Bíblia revela em primeiro lugar não é o Deus criador e sim o Deus libertador. O que está no núcleo da Bíblia é o Êxodo, o mistério da libertação de Israel.

E o que está no âmago da nossa fé cristã é o acesso que temos à própria liberdade de Deus, ao que chamamos de nossa divinização, com a frase-chave que repito: estamos na terra para vir a ser por participação o que Deus é por natureza.

Na Bíblia, não ouvimos Deus dizer ao povo hebreu: "Fui eu quem te criou", mas: "Fui eu quem te libertou, fui eu quem te fez sair da escravidão da casa do Egito".


François Varillon
em "Crer para Viver" - Edições Loyola - página 154

domingo, 18 de julho de 2010

Autonomia e obdiência

A obediência que liberta finca suas raízes no interior do homem, é tecida com a voz pura do obediente; pura pois não deve haver nessa voz, para que o ato de obediência seja efetivamente libertador, nenhum fonema que não seja de estrita autoria daquele que obedece.

A resposta mecânica a estímulos exteriores não é obediência e sim tolice, pois tem sua raiz não no sujeito que responde – que é nesse caso nada mais que um espelho a refletir cenas exteriores – mas geralmente em estruturas de poder, que dependem invariavelmente desses espelhos indolentes para manter no palco o seu teatro surreal.

“Chega-se a se sentir que não é com ele mesmo que se está tratando, mas com chavões e com palavras de ordem que tomaram conta dele.”

Suprimir a autonomia do maior número possível de homens é não apenas a forma mais eficaz para estender e manter um poder como também uma maneira de obstar a salvação, originada de uma resposta autêntica e livre do homem à proposta de Deus.

O problema com a Igreja é que ela tornou-se uma estrutura de poder e com isso fez-se não uma semeadora da mensagem salvífica, mas precisamente o contrário, um sério obstáculo à divulgação dessa boa nova, uma estrutura que reclama espelhos que reflitam seus caprichos.

A tolice, me ensina Bonhoeffer, “não é um defeito de nascença [...] as pessoas são feitas tolas, isto é, deixam-se tornar tolas [...] Talvez seja mais um problema sociológico que psicológico. Ela é uma forma particular de influência das circunstâncias históricas sobre a pessoa.” Mais adiante o teólogo alemão, que sofreu barbaramente com a tolice nacional-socialista, afirma: “Qualquer demonstração exterior mais forte de poder, seja ele político ou religioso, castiga boa parte das pessoas, tornando-as tolas.”

O rebanho está inundado de ovelhas tolas que são reproduzidas em toda sorte de divisão celular, em meioses e mitoses. Na conversa com um tolo, lamenta Bonhoeffer – descrevendo com felicidade ímpar a impressão que se tem ao tentar conversar com um crente convicto – “chega-se a se sentir que não é com ele mesmo que se está tratando, mas com chavões e com palavras de ordem que tomaram conta dele. Ele está fascinado, obcecado, foi maltratado e abusado em seu próprio ser.”

Por viver no tempo e espaço em que viveu, Bonhoeffer sabia que “somente um ato de libertação poderia vencer a tolice” e que “uma libertação interior autêntica, na maioria dos casos, somente será possível depois que tiver ocorrido a libertação exterior. Até que esta aconteça, temos de desistir de todas as tentativas de persuadir o tolo.”

O desconcertante é que se queremos espalhar a boa nova o primeiro passo é tirar de cena a Igreja.


Alysson Amorim

A luta de Jesus pela independência

O propósito destas páginas é demonstrar que as instruções morais de Jesus não são complexas em suas exigências, mas requerem simplesmente de nós a única coisa que pode conferir à vontade inteireza de propósito, e produzir em nós uma atitude de firmeza e independência intelectual.

Com lamentável freqüência as palavras de Jesus são usadas pelos cristãos não como meios para a obtenção dessa vontade livre e independente, mas como regulamentos de autoridade inquestionável porque procedem da boca de Jesus. Essa aplicação das suas palavras, no entanto, representa uma efetiva insubordinação a elas.

Não podemos deixar de lado o fato de que Jesus esforçou-se para conduzir os que uniram-se a ele a uma postura que ia além desse tipo de obediência indolente. Compreender corretamente esse aspecto da sua obra é ver a consciência moral do ser humano encontrando nEle sua consumação final; e, se formos incapazes de enxergar isso, não poderemos experimentar a Pessoa de Jesus ou, em qualquer sentido real, o poder da redenção.
É adquirir independência no homem interior – ou seja, verdadeira vida.

Só conseguiremos apreender essa realidade quando as palavras de Jesus nos revelarem o espírito que nos capacita a adquirir independência no homem interior – ou seja, verdadeira vida. A não ser que encontremos em Jesus este caminho para a disciplina e a liberdade interiores, permanecerá para nós impossível experimentar sua Pessoa na qualidade de caminho que conduz ao Pai. Sem completa reverência é impossível que haja completa confiança; porém o acesso a Deus que é nosso através de Jesus consiste numa absoluta confiança na pessoa dele, confiança que representa a libertação dos horrores do isolamento espiritual. A não ser que tenhamos experimentado isso podemos, na verdade, prosseguir falando sobre o drama da redenção como algo realizado eras atrás, mas não teremos qualquer direito de dizer que ele é o Redentor cujo poder experimentamos agora.


Wilhelm Herrmann
em seu prefácio a Ensaios sobre o Evangelho Social, 1907

Nós, protestantes

Nós, protestantes, teremos mais cedo ou mais tarde de enfrentar a seguinte questão: devemos entender a Imitação de Cristo no sentido de que devemos copiar sua vida e, se é que posso usar essa expressão, simular seus estigmas; ou no sentido mais profundo de que devemos viver nossas próprias vidas de forma tão verdadeira quanto ele viveu a sua em todas as suas implicações? Não é coisa fácil viver uma vida modelada na de Cristo, mas é indizivelmente mais difícil viver nossa própria vida de forma tão verdadeira quanto Cristo viveu a dele.


Carl Jung

A morte da moralidade

A moralidade dos fariseus ainda prospera entre nós. Dentre os líderes intelectuais do nosso povo muitos sentem-se horrorizados diante da noção de que uma pessoa é capaz de fazer o que é bom apenas se sua vontade estiver direcionada à busca da verdade da forma como ela mesmo a percebe. Afirmam que, ao contrário, carecemos de mandamentos “objetivos” que nos digam exatamente o que fazer.

Se com isso eles quisessem dizer que coisas como lei, tradição e autoridade pessoal são em geral necessárias, estariam certos. A verdadeira opinião desses líderes do nosso povo, no entanto, é que obedecer a essas autoridades é em si mesmo fazer o que é bom e – pior ainda – que chegamos ao conhecimento do que é bom deduzindo-o a partir das leis impressas sobre nós pela natureza e pela história. Agindo assim esses guias cegos de cegos declaram não ter olhos para verem eles mesmos o que é bom, embora estejam cheios de honesto zelo, de uma natureza não muito diversa do zelo os fariseus, seus protótipos.

É apenas observando como Jesus vai à raiz da insinceridade e da indolência dessa concepção de moralidade que veremos claramente o significado de suas idéias morais em sua influência sobre nós mesmos.
Os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

No curso de sua incansável guerra contra o auto-engano dos homens virtuosos ao redor de si, Jesus revela que somos capazes de querer uma única coisa de cada vez. Por mais que nos esforcemos, não conseguimos servir a dois senhores. Da mesma forma que o olho deve ser “simples” para dar ao organismo a luz necessária, o homem interior estará na escuridão a não ser que concentre cada impulso seu numa única direção, na busca de um único alvo.

Será que Jesus considerou que sua missão consistia em revelar aos homens qual deveria ser esse alvo? De modo algum. Ele sabia que a essência da lei era conhecida em todo Israel, os mandamentos de amarmos a Deus e ao próximo. Sabia também que não era difícil fazer cada pessoa reconhecer quem é o seu próximo, de modo a perceber que quando está sendo cruel com o outro está condenando simultaneamente a si mesma. O objetivo de Jesus era outro, demonstrar que por nenhuma palavra externa somos capazes de chegar ao conhecimento do que é bom.

Jesus certamente viveu de maneira única a noção de Deus como expressão última de todas as coisas, como nosso único e necessário bem. Pois para ele o Reino de Deus significava apenas aquele futuro de bem-aventurança cuja condição necessária é que apenas Deus reine dentro de nós. Todas as coisas boas que não exatamente nos levam mais para perto de Deus preparam a nossa destruição. Verdadeira integridade é amor a Deus.

Porém, a partir dessas noções fundamentais a respeito da devoção os homens concluíram que nosso dever supremo é obedecer a vontade tradicional de Deus – conduta pela qual somos expostos a um perigo terrível, visto que conduz a uma forma de devoção fatal a qualquer clareza moral. Pois, dentre os mandamentos transmitidos a nós como expressão da vontade de Deus, haverá sempre em nós a tendência de considerarmos superiores aqueles que deixam claro qual seja nosso dever imediato para com Deus. Conseqüentemente, os preceitos relacionados ao ritual e ao culto assumem sempre a precedência sobre os que dizem respeito à nossa conduta para com os outros.

Isso Jesus encontrou nos defensores da virtude ao redor de si, gente que lutava com grande cuidado a fim de desenvolver e aprimorar as regras transmitidas a eles para o serviço de Deus. Porém aos olhos de Jesus a virtude aparente desse método de servir a Deus transformava em impossibilidade um serviço vivo e vital; ele via nesse método a carcaça ao redor da qual reuniam-se os abutres.

Jesus não dará ouvidos às nossas alegações de que uma obrigação relacionada ao culto nos desobriga de suprir as necessidades de qualquer pessoa pela qual sejamos responsáveis num dado momento. Os profetas já haviam dito que misericórdia é melhor do que sacrifício, mas no tempo de Jesus do zelo dos escribas havia nascido e prosperado um religião cuja vitalidade envolvia a morte da moralidade.


Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)

sábado, 17 de julho de 2010

A obra inconclusa

Em terceiro lugar, o escopo do amor é ilimitado; sua obra jamais termina. Qualquer dever que possamos esperar concluir e dar por terminado não é um dever moral. Aquele cujo único conhecimento consiste de tarefas finitas não alcançou ainda a vida interior e a liberdade de uma mentalidade moral. A realização de qualquer coisa que o amor entenda ser seu dever conduz a novas obrigaçőes, maiores que as anteriores.

Se alguém, buscando comunhão com aqueles entre os quais foi colocado, imagina poder estabelecer quaisquer limites para os seus esforços, sua vontade não possui ainda uma natureza moral. Se a comunhão genuína com outros for realmente o único objeto da nossa vontade, não nos contentaremos com menos do que uma infinita capacidade para o serviço. Estaremos então preparados para a possibilidade de termos de desconsiderar todas as fronteiras que delimitam nossos direitos, se for para sermos capazes de cumprir nosso propósito de servir a comunidade.

Se for nosso o verdadeiro amor, estaremos prontos para qualquer sacrifício que possa estabelecer um elo comum de afinidade entre nós mesmos e aqueles ao nosso redor. É essa a autonegação para a qual somos chamados por Jesus: não um abandono sem sentido dos nossos poderes individuais, mas o exercício máximo deles, a disposição de entregá-los todos a uma grande causa. O que se ergue desse fundamento não é mera “disposição de espírito construída como um castelo de cartas” – pois, onde o serviço é dessa natureza, o indivíduo é construído sobre um reconhecimento aberto de necessidade. Se for cristã, essa pessoa se alegrará na promessa de que seu sacrifício é a chave para as riquezas do mundo que despertam o coração do homem para suas riqueza mais profundas.

A mente que está viva em Jesus, a mente que ele requer de nós, está enraizada e fundamentada no conhecimento de que uma única coisa é boa, uma vontade direcionada à comunhão de seres conscientes de si mesmos – em outras palavras, amor. Essa mente, de acordo com a explicação que Jesus fornece do amor, é vontade uniforme, independente e inesgotável. Seu ponto culminante é a percepção de que esta vontade é poder sobre todas as coisas: é Deus.


Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O que lhes faltava

Podemos ganhar uma idéia mais clara a respeito da mente de Jesus e da sua pessoa observando a natureza da diferença moral entre ele e os outros ao seu redor. Estaria essa diferença no princípio de que a integridade não é questão de ação exterior mas de disposição interior? Seria essa a natureza da “justiça superior” [à dos fariseus] na direção da qual ele procurava impulsionar os seus discípulos?

Porém, para gente familiarizada com as palavras dos profetas “Este povo honra-me com seus lábios, mas o seu coração está distante de mim” e com a oração “Cria em mim, ó Deus, um coração puro”, essa distinção certamente não pareceria novidade. Com respeito a isso a diferença entre Jesus e os justos da sua nação só poderia ter consistido no grau de precisão com o qual ele aplicava esse princípio, e teria sido essa diligência que lhe dera o direito de chamá-los de hipócritas.

Se, porém, pararmos por aqui, estaremos longe de compreender Jesus na força e na totalidade da sua mente. O que é peculiar no pensamento moral de Jesus é que ele leva esse princípio ainda mais longe, e assim exibe pela primeira vez a sua força completa.

Ele tem profusa satisfação em, como os profetas, atacar a hipocrisia no sentido da deliberada discrepância entre o que se é e o que se aparenta ser; ele também expõe a natureza radical dessa discrepância. Porém Jesus sem dúvida sabia que, no sentido usual do termo, os fariseus não eram hipócritas, prontos como estavam a enfrentar a morte nas mãos dos romanos sempre que a inviolabilidade da lei estava em risco.

No sentido usual do termo, os fariseus não eram hipócritas.

Ele no entanto decidiu claramente que a medonha corrupção da natureza espiritual deles fazia-os merecedores do julgamento do inferno. Ele denunciava-os por prescreverem, deixando de colocar em prática, e por não cumprirem as exigências que eles mesmos haviam imposto sobre os outros. Porém não era por falta de atividade, como comumente se pensa, que os fariseus deixavam quaisquer deveres por cumprir; ao contrário, eram zelosos até o último grau.

O que lhes faltava era aos olhos deles mesmos de pouca importância – algo para o que não tinham tempo, devido à supremamente importante preocupação de cumprir a lei com a maior exatidão possível. Para eles, portanto, não era objeto de preocupação que sua vontade pessoal fosse sincera e íntegra com relação a si mesma, consciente de seu direito eterno. Eles, de fato, buscavam cumprir a lei, mas apenas a fim de se provarem justos, e portanto a fim de obterem algo completamente diferente.

Eles queriam servir a dois senhores – feito que, segundo Jesus, é impossível de realizar por causa da natureza da vontade. Buscando compreender no mais ínfimo detalhe um número enorme de preceitos isolados, os fariseus negligenciavam a questão essencial da lei, a demanda por justiça, misericórdia e fidelidade como meio para uma irmandade genuína.

Não estavam fundamentados na verdade, porque negligenciavam a autenticidade que deve ser capaz de enxergar por si mesma o significado e a justa demanda da lei, descobrindo dessa forma como cumpri-la. Tornavam a lei um fardo terrível de se levar, mas não sentiam eles mesmos o seu peso, porque era fácil para eles satisfazer exigências incompreensíveis, e porque viam que é perfeitamente possível desempenhar e livrar-se de tarefas cujo significado não se compreende. Imaginavam que cumpriam adequadamente a lei, e consideravam-se servos valiosos; enquanto isso, impediam que os conceitos morais da lei entrassem em vigor, por acharem que não valia à pena investigar a verdade que havia neles.


Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O amor é mais severo que a justiça

Em segundo lugar, o amor distingue-se da justiça pela natureza dos seus motivos. A obediência legal é sempre induzida por estatutos definidos; o amor não. Uma vontade que dependa de um impulso externo como esse não compartilha da natureza do amor. O amor genuíno só recebe ordens de si mesmo. O fato de que outros estabeleçam como nosso alvo a verdadeira comunhão interpessoal não determinará que conduzamos uma vida cheia de amor; esse alvo, permanecendo para sempre em pé por seus próprios méritos, só pode ser compreendido por quem está cheio de amor, e que por livre escolha adota-o para si mesmo.

Além disso, como o amor é o reconhecimento, de dentro, de um alvo eterno, ele é guiado passo a passo por seu próprio caminho autodeterminado. O que por si mesmo julga ser, em suas próprias circunstâncias particulares, o melhor meio de alcançar o alvo eterno, regerá sempre a sua conduta; ele não conhece outro caminho. Caso se submetesse a quaisquer outras leis sua livre confiança seria dominada pelo medo, ou sua energia afundaria em indolência.

O amor genuíno só recebe ordens de si mesmo.

Mesmo que, como os heróicos fariseus, um homem sofra o martírio por sua fé, isto é, por obediência à lei, se não tiver em si mesmo algo dessa sinceridade e dessa independência do amor, de acordo com o apóstolo Paulo ele nada será.

A verdade é que, no que diz respeito ao tempo, o amor começa em todos os casos apenas quando uma pessoa experimenta o amor. Daí os esforços incessantes de Jesus no sentido de despertar nas pessoas um senso do amor inesgotável que na realidade experimentam. Uma vez que essa consciência nascente produza sua obra dinamizante, a pessoa possuíra vida em si mesma. Sua atividade não estará mais fundamentada, como se fosse mera transação, no interesse próprio, já que vantagens podem ser obtidas promovendo-se o bem-estar de outros; não será despertada por estímulos à simpatia, surgindo a partir de uma comunhão já estabelecida.

Uma vez que o amor venha à existência, sua operação será inteiramente autodeterminada. Não poderá aceitar leis vindas de fora, mas a partir de sua consciência interior outorgará a lei para si mesmo. Deixará de depender de um objeto digno de amor, como acontecia quando foi inicialmente despertado, mas, como o sol de Deus, distribuirá livremente e abundantemente, em todas as direções, suas riquezas peculiares.

A esse amor pertence a tranqüilidade sublime do poder criativo. Sua natureza e sua força são divinas. Jesus ensina que é assim, e diz ainda que o amor, e apenas o amor, é requerido de todo homem. O fato de que Jesus seja capaz de exigi-lo, por saber que será desperto esse livre a ativo poder do amor naqueles reunidos ao redor de si, em cujas vidas resplandece agora mesmo a luz pela sua manifestação de si mesmo – é isso o que a redenção representa para nós.


Adolf Harnack, em Ensaios sobre o Evangelho Social (1907)

O poder de Deus é o poder do Amor

Nós, cristãos, afirmamos tranquilamente, como se isto fosse evidente, que Deus é todo-poderoso ou será que pronunciar tais palavras provoca em nós um mal-estar?

Creio que para muita gente, isto não apresenta dificuldades; efetivamente, Deus é Deus, não se compreende como não será todo-poderoso. Mas há outras pessoas, contudo, cada vez mais numerosas na época de crise que ora atravessamos, para as quais as afirmações de uma onipotência de Deus é o mais grave motivo para não crer.

Não sejamos superficiais ao analisar a posição desses homens: no fundo, eles julgam mais digno do homem e, consequentemente, mais verdadeiro proferir um céu vazio ao fantasma de um Imperador do mundo, potentado, déspota, dramaturgo supremo, a manobrar as marionetes da tragicomédia humana, fixando, petrificando ou curto-circuitando liberdades, que, aliás, supõe-se que haja criado.

Admito ateus que são ateus por lhes parecer contraditório o conceito do Absoluto ou de Transcendente. Creio, porém, que a maioria dos ateus são aqueles que abominam uma onipotência que seria denegadora ou destruidora de nossa liberdade. De todas as flechas que visam a fé cristã ou mesmo ao deísmo, a que pretende ferir Deus em sua onipotência é a que mais seguramente se aproxima do alvo.

Ora, se reflito naquilo que creio (e eu os convido a refletir naquilo em que crêem), vejo claramente o seguinte: seria radicalmente impossível para mim fiar-me em Deus, abandonar-me a Ele em confiança se nada soubesse sobre a natureza de seu poder. Ele é todo-poderoso mas poderoso com que poder? Diante de um ser muito poderoso, recomenda-se prudência.

A mais elementar sabedoria manda desconfiar. Antes de tudo, permanecer livre, salvaguardar a independência. Mais vale o niilismo (do latim, nihil: nada) que a escravidão. O niilismo é a grande tentação deste século, pois o gosto pelo nada, por amargo que seja, é menos amargo que o da servidão. Entre não ser e ser escravo do poder de Hitler, escolho deliberadamente não ser.

Bem sei que o niilismo é um sonho, pois o fato é que eu existo. Mas posso ao menos deixar-me escorregar pela rampa que conduz ao suicídio. Menor loucura é suicidar-se que cair nas mãos de alguém que nos ameaça a liberdade. Não posso afirmar que creio num Deus todo-poderoso, a não ser que tenha a certeza de que se trata de um poder que não ameaça a minha liberdade.

Em outros termos (e aqui peso as palavras, pois se trata do essencial de minha fé), se eu não acreditasse que Deus só é poderoso para amar e ir até o cúmulo do amor, até a morte (morrer pelos que se ama) e o perdão (perdoar os que nos matam), se eu não acreditasse que o poder de Deus é um Sobrepoder cuja natureza é renunciar por amor à utilização dos meios do poder para manipular as criaturas, eu imediatamente aceitaria que os homens descessem a encosta do sonho niilista e teria o cuidado de não acusar meus contemporâneos que se deixam fascinar por esse sonho.

Tudo muda, porém, se a onipotência de Deus é a onipotência de amor. Entre onipotência e amor todo-poderoso, há uma grande diferença; há, literalmente, um abismo. O cristão não diz acreditar que Deus é todo-poderoso, diz acreditar em um Deus Pai todo-poderoso. Importância decisiva na preposição “em” seguida do nome próprio. No credo, a afirmação de Deus e de sua onipotência é pronunciada e compreendida num movimento de confiança e amor, expresso precisamente por essa preposição. Dizer: creio em ti é dizer: sei que teu poder não é um perigo para a minha liberdade, mas que ele está, bem ao contrário, a serviço de minha liberdade. “Crer em”, a chave é esta.

[...]

A fé é o impulso de todo ser para Deus, o comprometimento do mais profundo de si; se assim não for não se trata de fé. Um tal impulso seria delírio e loucura, não houvesse a certeza de que Deus é todo-poderoso para amar, que o amor, não o poder, é que é a essência de Deus; que o poder é um atributo do amor. Confiar-me sem reservas a um poder que poderia ser perigoso para minha liberdade seria loucura. Abandonar-me a um ser desprovido de poder seria igualmente loucura. E a ideia de um amor isento de poder ou energia é igualmente louca, insensata. Mas, ao contrário, o que se preenche magnificamente de sentido é a acolhida à Energia de amar. Ora, o Espírito Santo é isso: a Energia Divina de amar que nos foi dada.

[...]

Crer na onipotência de Deus, crer que Deus é todo-poderoso sem acreditar nele: nada há de igual para falsear a vida religiosa pela raiz. Nada de igual para desencadear uma mentalidade mágica. A história das religiões demonstra que a mentalidade e as práticas mágicas pululavam na história e ainda em nossos dias, mesmo nos meios cristãos, a despeito dos eufemismos vocabulares eclesiais. Não nos deixemos enganar pelas palavras. O que está em jogo, em relação a Deus, são frequentemente o interesse e o medo.

Manda o interesse que se busque utilizar a onipotência em nosso benefício; e exige o temor que se encontrem meios de preservar do perigo que ela encerra. E isto nada tem a ver com a fé. É magia. Se fosse possível psicanalisar o conteúdo do espírito de certo número de cristãos mal-educados, perceber-se-ia que eles dizem, baixinho: “O que será que Deus está cozinhando lá em cima? Que estará preparando para mim? Ventura ou desventura? Saúde ou doença? Sucesso ou fracasso? Por interesse e por temor, vou orar para que não me prepare nada de desagradável”.

Até o dia em que surge a tentação de exorcizar radicalmente a ameaça, dizendo: não há um Deus todo-poderoso. Nesse momento é que o ateísmo irrompe para a consciência adulta como a mais racional das atitudes. E isto não é de todo falso. É só não esquecer a frase de Pascal: “O ateísmo é sinal de força do espírito, mas só até certo grau”. Porque sob o céu transformado em deserto, esvaziado do supremo todo-poderoso, nascem e proliferam outros poderes, poderes que não se temerá absolutizar alegremente, em todos os níveis da vida individual e coletiva. São poderes que bem conhecemos: dinheiro, sexo, raça, partido, etc. Tudo nele pode tornar-se poder de dominação, de opressão, de destruição. Toda mutação da civilização é, de certo modo, uma mutação de idolatria.

Tudo isto – magia supersticiosa ou ateísmo negativo (a escolha é de vocês) é inevitável, se o poder de Deus não for compreendido como poder de amor. O cristão crê na onipotência do amor. A fé é um ato íntimo de sua liberdade, que o compromete até o mais profundo de si e o põe em movimento rumo a um Amor que só sabe amar. O cristão não diz que crê em Deus todo-poderoso; ele diz crer em Deus Pai todo-poderoso. O que clama, o que canta é o poder de uma paternidade.

A estrutura do Credo é trinitária. Nem eu nem os cristãos cremos que Deus é um eterno Narciso, a contemplar a si mesmo, a admirar-se, a consumir-se a si mesmo, a absorver-se, a encarnar-se. Crer num tal Deus seria manifesto absurdo. Quando muito, eu poderia pensar que tal Deus narcísico existe. Mesmo assim... crer nele é impossível.

Ser a preposição “em” é essencial ao ato de fé, Aquele em quem eu creio só pode ser o Pai. E se o nomeio Pai, isto exige que, no mesmo impulso de pensamento e de amor, eu nomeie também o Filho e o Espírito. Dizer que Deus é amor, e dizer que Ele é Trindade é exatamente a mesma coisa.


François Varillon
Extraído de "Crer para viver" - Edições Loyola - páginas 143-147

terça-feira, 13 de julho de 2010

O retorno a Babel

A decrescente influência (e tamanho) da igreja tem levado muitos a tentar reembalar a mensagem cristã de um modo mais compreensível e atraente para as audiências contemporâneas. Abundam igrejas sensíveis aos sedentos por espiritualidade, e o evangelho vem sendo reembalado no idioma da pós-modernidade. Essas estratégias, no entanto, embora gerem crescimento de igreja em alguns lugares, têm se mostrado em grande parte incapazes de criar qualquer transformação significativa. Isso acontece por duas razões. Em primeiro lugar, conforme sugerido acima, muitos dos que buscam reevangelizar o ocidente não reconhecem quão profundamente a igreja permanece envolvida dentro das estruturas de poder. Em segundo lugar, são poucos os estrategistas missionais que têm levado em conta o papel desempenhado pela linguagem. A crença de que alterar as palavras basta para reembalar a mensagem deve ser reexaminada, especialmente à luz da presente situação.

Poderosas mudanças dentro da cultura ocidental resultaram numa visão de mundo em que as palavras são entendidas como estritamente formais. As palavras não são mais capazes de reter conteúdo significativo, podendo ser usadas para designar absolutamente qualquer coisa.

A sociedade ocidental experimenta o que vem sendo chamado de a “morte da palavra”: cada vez mais a linguagem só se mostra funcional no domínio do lugar-comum. Ela é útil para atividades como encomendar comida pronta ou planejar um encontro, mas é cada vez mais vista como inadequada para qualquer coisa além disso. Essa morte da palavra é exibida em (e perpetuada por) três áreas: na ambivalência do discurso político, no marketing do sagrado e do simbólico e na transição de uma cultura tipográfica para uma cultura visual.

Noam Chomsky, professor de linguística do Instituto de Tecnologia de Massachussets, ganhou notoriedade ao revelar a ambivalência contraditória do discurso de políticos e organizações de mídia norte-americanos. Chomsky demonstra, em cuidadosos estudo caso-a-caso, de que forma atos de agressão e de terror são descritos como “defesa da democracia e dos direitos humanos”. Dessa forma, os inimigos das corporações americanas são vistos como “terroristas”, “comunistas” ou até mesmo “inimigos da civilização”, enquanto a frase “terrorismo norte-americano” é vista como contradição em termos, algo como um “clamoroso silêncio”. Nesse domínio da linguagem livre de conteúdo, o atual presidente dos Estados Unidos sente-se à vontade para dizer “só quero que vocês saibam que quando estou falando de guerra, estou na verdade falando de paz”. Declarações como essa seguem relativamente incontestadas, revelando o modo pelo qual os políticos tratam a linguagem e as palavras como formas que podem ser preenchidas com qualquer conteúdo que desejem.

Embora se mostre talvez pouco consciente do grau em que a democracia liberal ocidental está amarrada aos interesses de empreendimentos capitalistas privados, a população em geral tem adotado a postura de que os políticos não são dignos de confiança. As pessoas podem não ter certeza de em quê têm sido enganadas, mas não têm dúvidas de que os políticos vêm mentindo para elas. Uma linguagem política significativa tem sido perdida numa glutonaria de grandiloquência e na proliferação de termos untuosos.

O consumismo e as atuais campanhas de marketing têm também ocasionado uma desvalorização da linguagem, especialmente no que diz respeito ao sagrado e ao simbólico. Linguagem religiosa e ideológica tem sido adotada por empreendimentos comerciais. Nesse contexto, a declaração de Summer Redstone, de que “a MTV está associada às forças da liberdade e da democracia ao redor do mundo”, não atinge o público como particularmente questionável. De fato, as campanhas de marketing são mais eficazes quando são irracionais, explorando os poderes mágicos e poéticos da linguagem e dos símbolos. O marketing corporativo de diferenciação vende mercadorias que se tornam “uma filosofia de modo de vida”. Produtos deixam de ser bens e tornam-se conceitos. A linguagem e os símbolos são aplicados indiscriminadamente: um clube de golfe passa a representar o perdão, uma peça de mobília passa a representar a democracia, e os símbolos e todos os antigos deuses são drenados de suas conotações sérias e sagradas. A repetição e a aplicação indiscriminada transforma a linguagem em ruídos sem significado. O consumismo, como o Deus da Bíblia, exige: “não terás outros deuses diante de mim”.

Finalmente, a transição de uma cultura tipográfica para uma cultura visual é expressão do declínio da linguagem, e é em si mesma uma contribuição para a morte da palavra. A forma que uma conversação assume acaba tendo poderosa influência sobre quais ideias podem ser expressas. A transição de mídia-metáfora de uma cultura tipográfica para uma cultura visual tem reduzido a maior parte da linguagem a completo contra-senso. Como afirma Neil Postman, “uma imagem pode valer mil palavras, mas mil imagens, especialmente de uma mesma coisa, podem não valer coisa alguma”. Foi precisamente contra isso que advertiu a assembléia do Vaticano II. Antes de adotar a mídia devemos compreender o modo que a mídia impacta e transforma a mensagem. Uma dependência da imagem destrói o discurso genuíno, porque discurso requer continuidade. Uma cultura visual e, em especial, uma cultura de consumo, menospreza a continuidade em favor do eterno agora.

Dentro de uma cultura de ambivalência, de consumismo e de imagens, a linguagem tem se tornado cada vez mais o que cada pessoa escolhe que seja. Numa cultura sem história, sem continuidade, em que palavras são aplicadas indiscriminadamente a uma variedade de contextos, não pode haver conversação genuína. A cultura ocidental fez o trajeto de volta a Babel.

É esse retorno a Babel que aqueles que reembalam a mensagem cristã tem deixado de levar a sério. Ao tentar apresentar o evangelho de uma maneira que seja compreensível para a cultura, a igreja contemporânea corre o risco de repetir os erros cometidos pela igreja na modernidade. Desde o Iluminismo e da ascensão do estado secular os cristãos vem tentando traduzir o cristianismo em termos que sejam significativos e convincentes para aqueles que não compartilham das crenças particularistas do cristianismo. Quanto mais sucesso tiveram esses cristãos, no entanto, mais as particularidades e o teológico perderam sua significância. O que começou como uma retirada estratégica logo tornou-se uma derrota. A mudança de linguagem mostrou-se incapaz de manter-se fiel à mensagem original em sua totalidade, pelo que o evangelho acabou sendo inevitavelmente distorcido. Quando os cristãos contemporâneos tentam apresentar o cristianismo como uma religião de “paz”, “amor” e “direitos humanos universais”, são as definições culturais dessas palavras que acabam sequestrando o sentido particular que o cristianismo tem delas. O resultado são ideias abstraídas da pessoa concreta de Jesus, gerando uma filosofia que procura existir fora da história. Uma igreja que se propaga falando a língua da cultura é, inevitavelmente, uma igreja cultural e não uma igreja cristã.

Se resta alguma dúvida quanto a isso, bastará examinar o modo como o capitalismo de livre-mercado e as democracias liberais ocidentais tem subvertido os movimentos contemporâneos de contra-cultura. Vozes de dissensão são rapidamente sequestradas e tornam-se “a grande tendência do momento”, ou são então absorvidas. Muita gente no ocidente, por exemplo, tende a pensar que as mulheres alcançaram status igualitário em relação aos homens – mas essa crença contradiz as estatísticas de que as violências sexuais e atos de violência contra as mulheres tem na realidade aumentado. O que começa como uma voz radical falando nas margens logo torna-se uma marca e é vendido como a moda mais recente. Isso é verdade mesmo para os movimentos que se opõem aos próprios fundamentos do capitalismo. Logo depois do nascimento dos movimentos anticorporativistas o marketing das corporações passou a absorver e usar em seu favor os símbolos e a linguagem da ação anticorporativista. Sendo assim, o feminismo e “a força da mulher” são alcovitadas pelas indústrias de música e de moda, a GAP coloca pichações de “Revolução!” nas suas vitrines, e a Benetton associa o ato de comprar suas roupas a lutar contra o racismo. Do mesmo modo, a igreja que procura existir como contra-cultura, mas escolhe falar a linguagem da cultura, é inevitavelmente absorvida e tornada em mercadoria.


Daniel Oudshoorn

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Não existe uma igreja assim

Meu amigo Tony Campolo [...] se encontrava em um local que tinha um fuso horário bem diferente e não conseguia dormir. Então, bem depois da meia-noite saiu perambulando até chegar a uma confeitaria. Algumas prostitutas locais também ali entraram no meio da madrugada, depois de suas atividades habituais. Lá ele não pôde evitar de ouvir uma conversa entre duas delas. Uma, chamada Agnes, disse à outra: “Sabe de uma coisa? Amanhã é meu aniversário. Vou fazer 39 anos. [...] Nunca tive uma festa de aniversário em toda minha vida [...].

Quando saíram, Tony teve uma idéia. Perguntou ao proprietário da confeitaria se Agnes ia lá todas as noites, e, quando ele disse que sim, convidou-o a participar de uma conspiração para organizar uma festa surpresa. Até a esposa do proprietário se envolveu. Juntos, arrumaram um bolo, velas de aniversário e decoração para que festejassem com Agnes, que para Tony não passava de uma completa estranha. Na noite seguinte, quando ela entrou, todos gritaram: “Surpresa! Surpresa!” – e Agnes não podia acreditar no que seus olhos estavam vendo. Os fregueses da confeitaria cantaram e ela começou a chorar tanto que mal conseguiu soprar as velinhas. [...] Em seguida, ela saiu carregando seu bolo como se fosse um tesouro.

Tony conduziu os convidados em um momento de oração por Agnes e o proprietário da loja disse que não fazia a menor idéia de que Tony fosse um pregador e pastor. E então perguntou a Tony de que tipo de igreja ele era. Tony respondeu que era de uma igreja em que se dão festas de aniversário para prostitutas às 3:30 horas da madrugada. O homem não podia acreditar. “Não, isso não é possível. Não existe uma igreja assim. Se existisse, eu me juntaria a ela. É, com certeza eu faria parte de uma igreja desse tipo”.


Brian McLaren,
em "A Mensagem secreta de Jesus"

sábado, 10 de julho de 2010

Ao contrário

Não devemos acreditar em Jesus dependendo de se os profetas anteriores falaram a respeito dele; ao contrário, devemos crer que os profetas são profetas na medida em que aquele que é o Cristo endossa o que eles disseram.


Tiago, filho de Alfeu,
nas Homilias de Pseudo-Clemente (século III)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O papel das narrativas: descartando os absolutos

À medida em que o ocidente continua a afastar-se da cristandade, a igreja não pode esperar apelar a absolutos metafísicos ou morais a fim de dar suporte à sua proclamação enquanto se engaja com a sociedade. Dentro de uma sociedade pluralista esse tipo de realidade universal simplesmente não existe. Isso é assim porque a narrativa cristã deixou de funcionar como a metanarrativa social. Os cristãos não podem simplesmente recomendar a ética cristã àqueles fora da narrativa cristã, porque não existe um código moral universal. Noções como “amor”, “paz” e “justiça” não são realidades universalmente compreendidas, mas derivam seu significado e inteligibilidade de uma narrativa construidora.

Nesse sentido é importante entender que toda vida humana está fundamentada em narrativas. Narrativas não são substitutos para fatos ou verdades abstratas; antes, são um sistema de referência para a compreensão do mundo, e não podem ser reduzidas a máximas. O estado caótico moral do mundo ocidental reflete uma sociedade que parece ter perdido qualquer forma de narrativa estruturadora. Uma sociedade como essa subsiste apenas com “os fragmentos de um esquema conceitual, partes que agora carecem dos contextos dos quais sua significância era derivada”. A erosão dos símbolos e de uma linguagem de significado, aliada ao foco no eterno como agora e à desvalorização da tradição e da história, resultaram numa perda de narrativa. Cada pessoa abraça uma narrativa de sua própria escolha, ou abraça um modo de vida definido pela crise – em que não resta tempo de se perceber, ou de ater-se ao fato de que, está faltando uma narrativa estruturadora. A igreja não pode mais apelar para quaisquer absolutos dentro do modo de agir, pensar e sentir da sociedade pluralista contemporânea.


Daniel Oudshoorn

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O Beijo do Todo-Poderoso

Toda história da revelação é a da conversão progressiva de um Deus visto como Deus de poder a um Deus adorado como amor. E dizer que Deus é amor é dizer que Deus é todo amor.

Tudo está neste “É TODO”. Eu os convido a passar pelo fogo da negação, pois só além dele é que a verdade realmente se destaca. Deus é Todo-poderoso? Não. Deus é todo Amor, não me venham dizer que ele é Todo-poderoso. Deus é infinito? Não, Deus é todo Amor, não me falem de outra coisa. Deus é sábio? Não. Eis o que chamo atravessar o fogo da negação: é absolutamente necessário passar por isso. A todas perguntas a mim dirigidas, responderei: não! não! Deus é todo Amor.

Dizer que Deus é Todo-poderoso é propor como pano de fundo um poderio que se pode exercer pela dominação, pela destruição. Há seres suficientemente poderosos para a destruição (vejam Hitler, que matou seis milhões de judeus). Muitos cristãos propõem o Todo-poderoso como pano de fundo e depois acrescentam: Deus é amor, Deus nos ama. Isso é falso! O amor é que é todo-poderoso.Se Deus é Todo-poderoso, ele o é pelo amor, o amor é que é Todo-poderoso.

Às vezes dizemos: “Deus pode tudo!” Não, Deus não pode tudo, Deus só pode o que o amor pode. Pois ele é todo amor. E todas as vezes que saímos da esfera do amor erramos sobre Deus e estamos em vias de fabricar algum tipo de Júpiter.

Espero que vocês captem a diferença fundamental que há entre um todo-poderoso que nos ama e um amor todo-poderoso. Um amor todo-poderoso não só é incapaz de destruir seja o que for, como é capaz de enfrentar a morte.

Em Deus não existe outro poder além do poder do amor, e Jesus nos diz (ele é que nos revela quem é Deus): “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (João 15:13). Ele nos revela o poder total do amor ao consentir em morrer por nós. Quando Jesus, no Jardim das Oliveiras, foi flagrado pelos soldados, preso e amarrado, ele mesmo nos disse que poderia ter apelado para legiões de anjos, que o arrebatariam das mãos dos soldados. Absteve-se de fazê-lo, pois nos teria assim revelado um falso Deus, teria revelado um todo-poderoso, ao invés de nos revelar o verdadeiro, aquele que vai até a morte pelos que ama. A morte de Cristo nos revela o que é o poder total de Deus; não um poder de esmagamento, de dominação; não é um poder arbitrário, do qual diríamos: “Que estará ele tramando lá em cima?” Não, ele é todo amor, e esse amor é todo-poderoso.

Reintegro os atributos de Deus (poder absoluto, sabedoria, beleza…), mas esses são atributos do amor. Daí a fórmula que lhes proponho: “O amor não é um atributo de Deus, entre outros, mas os atributos de Deus são os atributos do amor”.

O amor é todo-poderoso.

O amor é sábio.

O amor é belo.

O amor é infinito.

Que é um amor todo-poderoso? É aquele que atinge o ápice do amor. E o poder total do amor é a morte: ir até o ápice do amor é morrer por quem se ama. É igualmente perdoá-lo. Se há entre vocês quem haja passado pela dolorosa experiência de uma rixa em família, ou num grupo de amigos, saberá até que ponto é difícil perdoar verdadeiramente. É preciso um amor rudemente poderoso para perdoar, perdoar realmente. É preciso o poder de amar!

[...]

E podem torcer as coisas como quiserem, mas o amor é dom e uma acolhida. O beijo é um belo símbolo de amor: é ao mesmo tempo sinal de dom e de acolhida. Um beijo não acolhido não é verdadeiramente um beijo. Uma estátua de lábios de mármore não recebe beijos, só lábios vivos. E lábios vivos são os que acolhem e dão ao mesmo tempo. O beijo é um gesto admirável e, exatamente por isso, é preciso não prostitui-lo, não brincar com ele; é preciso preservá-lo como sinal de algo extremamente profundo (e aqui chegamos ao âmago de tudo o que a Igreja pensa em matéria de moral sexual). O beijo é troca de sopros que significa a troca de nossas profundezas; sopro-me em ti, expiro-me em ti, aspiro-te em mim, de tal modo que estou em ti e tu em mim.

Ou seja, descentro-me para que meu próprio centro não mais me pertença; de agora em diante, sejas tu o meu núcleo. A ti é que amo, a ti que és meu centro, vivo para ti e por ti; sei que tu também te descentras, não és mais o centro para ti mesmo, estás centrado em mim. Estou centrado em ti, vivo por ti. Estás centrado em mim, vives por mim e vivemos os dois um pelo outro. Amar é viver para outro (dom) e viver pelo outro (acolhida). Amar é renunciar a viver em si, por si e para si.

Eis o mistério da Trindade: se o amor é acolhida, é necessário que haja diversas pessoas em Deus. Ninguém se dá a si mesmo, nem a si mesmo acolhe. A vida de Deus é essa vida de acolhida e dom. O Pai é movimento para o Filho. Ele não é senão pelo Filho. São realmente os filhos que dão às mulheres a condição de mães; sem eles, não o seriam. Ora, o Pai, sendo paternidade, não o é senão pelo Filho. O Filho é Filho para o Pai e pelo Pai. E o Espírito Santo é o beijo entre eles.

Sendo essa a vida de Deus – de acolhida e dom –, se devo tornar-me o que Deus é, não desejarei ser um ser solitário. Se sou um solitário, não me assemelho a Deus. E se não me assemelho a Deus, a questão de compartilhar eternamente de sua vida não me será proposta. É a isto que se chama pecado: não assemelhar-se a Deus, não tender a tornar-se o que ele é, dom e acolhida.


François Varillon
em Crer para viver

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Jesus te ama

Para Harold Bloom, a personalidade é uma invenção de Shakespeare; para Derrida, o indivíduo é uma ilusão criada pela intersecção do corpo com o discurso das estruturas de poder. Em alguma medida todos que estudam o assunto concordam que foram necessários milênios de evolução cultural para que o conceito de indivíduo saísse pela primeira vez do oceano indiferenciado da cultura da coletividade. Os gregos lhe deram pernas e o Renascimento moveu-se de paixão por ele, mas foi o capitalismo de livre-mercado – o mundo em que vivemos – que colocou finalmente o indivíduo acima de todos os outros deuses.

Esse lento despertar do indivíduo de seu sono no seio coletivo está refletido no próprio fio narrativo da Bíblia. No Pentateuco e, em grande medida, nas crônicas históricas, a coletividade prevalece de forma muito evidente sobre o indivíduo. Os mandamentos e as promessas, as injunções e as ameaças, dizem respeito ao povo como um todo e requerem coletiva obediência1. Mesmo notáveis como Moisés, Abraão e Davi são celebrados menos pelos seus traços de personalidade do que pelo seu papel na sustentação e fixação do caráter da comunidade. Num certo sentido só existe o coletivo: os méritos de Israel são medidos pelo desempenho do grupo, e todos são castigados pelo erro de uns poucos.

Então, em algum momento da história e talvez sob a influência transversal dos gregos, os profetas abandonam a ênfase tradicional na responsabilidade coletiva e começam a enfatizar a responsabilidade individual. A justiça divina passa a ser compreendida de uma nova maneira, e nela os filhos deixam de ser punidos pelas transgressões dos pais. Deus deixa de visitar as gerações e a massa indistinta dos “filhos de Israel” e passa a procurar homem a homem um coração contrito em que possa reclinar a cabeça.

O ensino de Jesus surge num momento em que o conceito de responsabilidade individual já está bastante desenvolvido no tecido cultural de Israel. O Filho do Homem, por um lado, reforça ao extremo essa tendência, denunciando os abusos da religiosidade coletiva-institucional e requerendo de cada um o posicionamento e o engajamento que o distinga da ilusão da massa. Por outro lado, Jesus reverte por completo o alvo e o fim da individualidade, deixando claro que o indivíduo só encontra realização, significado e verdadeira satisfação no serviço voluntário e não-condicionado do próximo. O conceito de metanoia, como apresentado por Jesus e pelo seu precursor, diz respeito a esse duplo despertar do humano para sua individualidade e para seu destino glorioso no seio do Outro. Porque para Jesus só existe o indivíduo, mas a qualidade da relação do indivíduo com Deus e consigo mesmo tem uma única medida, a da qualidade da sua relação com o outro. “Sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, a mim o fizestes”.

Dos discursos ausentes de Atos e do Novo Testamento, o mais revelador – tanto da mentalidade da comunidade original quanto da nossa – talvez seja o apelo ao indivíduo que caracteriza toda a evangelização contemporânea, e encontra sua manifestação mais comum na fórmula “Jesus te ama”.

Os colonizadores bíblicos do reino encontraram muitas maneiras de propor a boa nova, mas parece que nenhuma delas passa por enfatizar o amor individual e incondicional de Jesus (ou de Deus) pelo ouvinte. A Bíblia está muito mais inclinada a dizer que Jesus é Deus, e que Deus é amor, do que a fornecer ao seu leitor o conforto (que oferecemos a qualquer um) de que Jesus o ama. Isso porque articular a boa nova como “Jesus te ama” requer como pré-condição uma sociedade inteiramente obcecada com a ideia do indivíduo: a nossa sociedade.

Há um oceano de diferença entre dizer, como a o Novo Testamento, “Deus é amor”, e dizer, como dizemos, “Jesus ama você”; entre dizer como a Bíblia “andem em amor, como Cristo também os amou”, e dizer como dizemos “Jesus te ama”. A articulação bíblica, de que Deus é amor, requer uma resposta ativa de amor ao outro, e sugere um trajeto que resgate o ouvinte do abismo sem fundo do individualismo. A conclusão necessária de ouvir “Deus é amor” é um incômodo devo amar. Nossa própria articulação, “Jesus te ama”, requer uma resposta meramente passiva e ignora por completo a questão da minha relação com o outro. A conclusão necessária de ouvir “Jesus te ama” é um confortável sou amado. Para a Bíblia, o amor é um desafio que me resgata de mim mesmo; para o evangelismo contemporâneo, é um conforto que me faz afundar ainda mais dentro de mim.

Porque o Novo Testamento, que não cessa de atestar o amor de Deus, não se rebaixa como nós a usar esse amor como fonte de conforto e acomodação. Ao contrário, o amor divino requer a mais urgente e intransigente das respostas, a imitação:

Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.

Amados, se Deus assim nos amou, nós também devemos amar-nos uns aos outros.

Dizer “Jesus te ama” é sugerir que o sentido do movimento do reino é para dentro do indivíduo; a Bíblia, em contrapartida, insiste que o movimento do reino é no sentido oposto, do indivíduo para fora. Essa, do indivíduo para fora, é na verdade a única definição concebível de amor. Aqui está o padre francês François Varillon, lembrando que amar (isto é, ser salvo; isto é, ser como Deus) requer um movimento, uma transferência de centro, de nós mesmos para o outro:

Descentro-me para que meu próprio centro não mais me pertença; de agora em diante seja você o meu núcleo. [...] Amar é renunciar a viver em si, por si e para si. Eis o mistério da Trindade: se o amor é acolhida, é necessário que haja diversas pessoas em Deus. Ninguém se dá a si mesmo, nem a si mesmo acolhe. A vida de Deus é essa vida de acolhida e dom. O Pai é movimento para o Filho. O Filho é Filho para o Pai e pelo Pai. E o Espírito Santo é o beijo entre eles.

Dizer “Jesus te ama” é dirigir-se circularmente ao indivíduo, e para salvar o indivíduo é preciso resgatá-lo de si mesmo. Na narrativa de Atos a boa nova é que a obra de Jesus libertou seus ouvintes não para descansarem no privilégio inescapável de serem amados – mas para capacitá-los a fazer a coisa certa. E, se pecar é omitir-se, fazer a coisa certa é colocar o amor em prática. É por isso que, para os autores do Novo Testamento, amar (e nisso imitar a divindade) é privilégio e responsabilidade tão grande que diante dele ser amado representa a mais acessória das faculdades.

Nossa tendência é acreditar na pregação que afirma que viver o amor requer a negação do eu e equivale à completa renúncia da individualidade. A verdade é muito mais desafiadora e interessante, porque o amor é a única afirmação possível do eu. Jesus tornou-se grande no que amou; encontrou a mais completa e contagiante humanidade no ato de atribuir valor aos mais desprezíveis dos seus interlocutores. O inferno é o conforto da paralisia do ego, e a inteireza do eu está no trajeto para os outros.


Paulo Brabo

domingo, 4 de julho de 2010

A mais divina visão


O que do humano mais esperamos não passa de divinização cruel. O que chamamos de humanização, frequentemente, nada mais é que a idealização narcísea do outro. Bondade, paciência, justiça, polidez, bom senso, honestidade, equidade, pureza e todas as demais virtudes. Tudo muito lindo no meu discurso, mas um pesadelo nos ouvidos e na consciência dos que me rodeiam.

Imponho ao outro o que em mim imagino poderia ser perfeito. Exijo e puno todos a minha volta na proporção em que preciso esconder de mim mesmo a impossibilidade amarga de ser tão bom. O divino que me tortura é abrandado na medida em que culpabilizo o mundo. A gigante e divina moral me esmagaria se eu não o fizesse aos demais. Eis a origem dos conflitos.

Certamente foi esta imagem invertida que Jesus denunciou no moralismo dos fariseus. Chamando-os de guias de cegos, sepulcros caiados. Acusando-os de imporem aos demais o peso que eles mesmos não conseguiam carregar.

Aqui tropeçam secularmente as religiões e as políticas utópicas. Partem de universais que tem a autoridade do “ponto de vista do olho de Deus” (Richard Rorty) e com esta força moral idealizam um futuro imprescindível ao mundo mais humano, ou mais divino, no caso das religiões. E do alto desta perspectiva tornam-se o criadouro fértil dos discursos culpabilizadores e de seus filhos inevitáveis, os mecanismos de disfarces. Esgotados a utopia e seus moralismos e fracassados os simulacros coletivos, resta-nos ou o gosto insosso da apatia, ou o azedo do mais ácido pessimismo diante da realidade da vida humana.

Aqui entra a proposta de salvação trazida por Jesus. Sua resposta pelo que é verdadeiro e capaz de produzir salvação não está em uma utopia escatológica, nem em uma política revolucionária. Muito menos a salvação se apresenta em um conteúdo capaz de descrever a verdade, nem uma prescrição moral do “ponto de vista do olho de Deus”, esta sempre mata, dirá o Apóstolo mais a frente. A salvação não virá de Deus sobre a humanidade, já se tentou e não deu certo. A divina salvação virá da mais autêntica humanidade. Por isso Jesus diz de si mesmo: “eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim.” Não como idealização da vida humana, mas como humanização da idéia divina.

A salvação humana não está em uma glória divina. A glória de Deus é a vida humana plena de si. “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de verdade.” (Jo 1.14)

Não há um ponto de vista do olho divino que não seja uma grande ilusão. Em Jesus, o que há de mais divino tem plena visibilidade entre os humanos. “Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido”. (Jo 1.18)

Jesus é o fenômeno humano experimentado sem tergiversações. Ele nasce em um mundo perigoso. Desenvolve-se na companhia de uma gente esmagada pelas políticas de dominação mundial. Cresce em um ambiente religioso tão intenso em sua devoção quanto o sofrimento e a humilhação de sua gente. Convive com a injustiça e a pobreza, com seus filhos miseráveis, as doenças do corpo e da alma. Mas levanta-se sob a autoridade de uma esperança profetizada e aguardada. Afirma-se o Cristo na medida em que realiza uma peregrinação libertadora.

No instante em que sua vida se torna um ingrediente de esperança, Jesus experimenta a mais cruel das manifestações de nossa humanidade, a injustiça. Sua influência também é um deslocamento de poder. E nada é mais temível para os poderosos que um jogo de poder que eles não saibam ou não possam jogar. Jesus inverte a moral dos conquistadores e chama de poderosos os mansos da terra, de legítimos herdeiros do Reino os pobres deste mundo, de bem aventurados os degredados pela desigualdade social. Relativiza as grandes doutrinas, volatiliza os ritos, elege os pequeninos como fonte de sabedoria e lhes confere o rosto divino. Aos poderosos só resta criminalizar alguém assim. Aos religiosos, reputá-lo herege e ameaça à fé. Criminoso e herege. Crucificado. Morto.

O percurso de sua morte não foi forrado por qualquer idealização. Foi um fim trágico e injusto e não se fingiu outra coisa. Nem Jesus aceitou qualquer movimento que escamoteasse a realidade dos fatos. Alertando aos discípulos sobre a confusão após sua prisão e morte, desconsiderou as palavras devotas e otimistas de Pedro: “Todos podem te abandonar, mas eu jamais te abandonarei”. Para a cura de Pedro Jesus deixou seu doce ceticismo: sua expressão de fé não duraria nem uma noite. “Antes que o galo cante…” Jesus também nos ensina a morrer.

Sob o testemunho de Jesus resta-nos retomar a pergunta pelo que nos humaniza, ou pelo que nos faz mais humanos. O humano não é uma divinização moral, já sabemos. Minha desconfiança é que o humano seja a própria liberdade. Que o humano seja a realidade de um ser que se descobre tão livre ante o seu destino quanto entregue ao absurdo de uma existência sem garantias excepcionais. Sua vida é assustadoramente provisória, mas esta também é sua salvação. Pois na vida os dissabores e insucessos também são provisórios. Sua fraqueza é sua força. A mesma fragilidade que o leva à tragédia é a flexibilidade que o leva à revolução. A suscetibilidade é a outra face necessária de sua liberdade. Suas conquistas podem ruir, mas Suas perdas também podem ser superadas.

Só existe outro nome além de liberdade capaz de nomear o fenômeno humano sem encapsulá-lo em uma moral asfixiante. Amor. A negação do humano, ou a desumanização, é todo e qualquer mecanismo que despreze a precariedade humana e finja uma divinização. É o cúmulo da indiferença. Mas a afirmação do humano, ou sua humanização, é um testemunho de amor. É a recusa de todo e qualquer processo de indiferença e fuga, é o abraço à vida em sua plenitude. Amor. A abertura mais corajosa e radical ao fenômeno humano.

O que nos salva em Jesus é seu testemunho de amor. Ninguém jamais viu a Deus, e sempre que tentou falar de seu ponto de vista, desumanizou. O que de Deus vimos em Jesus é tudo o que de Deus se pode ver: o humano do ponto de vista do humano, a mais divina visão.


Elienai Cabral Jr
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