segunda-feira, 31 de maio de 2010

Qual é a maior solidão?

A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não dá a quem pede e o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto da sua fria e desolada torre.


Vinicius de Moraes - na prosa "Da Solidão" de seu livro Para Viver um Grande Amor.

domingo, 30 de maio de 2010

As possibilidades do futuro

Se foi necessário tamanho parêntese para recuperarmos parte do sentido de duas únicas expressões da resposta de Pedro – “arrependam-se” e “sejam batizados“, é para ficar demonstrado que a aparente solidez das palavras é totalmente ilusória. As palavras são pedras que no rio do tempo perdem por completo as suas arestas e adquirem outras formas.

Os estudiosos dessas transformações linguísticas explicam que quando examinamos uma palavra hoje em dia, por mais aplicada que seja a nossa investigação, não temos como saber o formato exato que tinha essa mesma palavra há cem ou duzentos anos. A norma inflexível é que, com a acumulação dos incidentes do tempo, vai ficando mais difícil determinar como determinado termo era usado ou interpretado numa dada época. Isso sem contar o fato de que, mesmo dentro dos limites de um único intervalo de tempo (digamos, na nossa própria época) ou de um único autor (digamos, este), uma palavra não se submete a assumir um significado fixo, mas insiste em esconder sua nudez atrás de nuanças e fluididades.

Como resultado, as palavras, que deveriam servir para elucidar os sentidos, acabam encobrindo-os. Deveriam servir para garantir a fixidez de antigos registros, e acabam por sequestrá-la. O viajante do tempo que dispõe-se a recuperar os significados originais de um texto razoavelmente antigo (isso supondo-se que exista algo tão singelo e inequívoco quanto um “significado original”) deve procurar corrigir a maleabilidade das palavras à luz de escavações arqueológicas e idiomáticas, e consertá-las precariamente pelo cinzel e pelo gesso de outras palavras – precisamente como temos tentado ao longo destes últimos capítulos. Mas esta está longe de ser uma ciência exata, e cada restaurador produzirá novas matizes e pinceladas a partir do mesmo quadro original.

No caso do texto bíblico, a dificuldade no processo de restauração dos sentidos é acentuada por dois fatores. O primeiro é a formidável distância cultural que nos separa das sociedades que produziram os textos originais. Estamos falando de gente que habitava um idioma e uma cultura com prioridades e símbolos espetacularmente diversos dos nossos. Podemos ter quase por certo que encontraríamos mais pontos de contato e mais preocupações em comum com um visitante de uma civilização extraterrestre do que com um judeu do primeiro século – perplexidade que apenas aumentaria se nos postássemos diante de um peludo patriarca como Abraão ou um de um desgrenhado profeta como Elias. Sabemos o que alguns desses disseram ou escreveram, mas isso pode não ser o mesmo que saber o que pensavam ou o que queriam dizer.

A segunda dificuldade a ser levada em conta na determinação dos sentidos bíblicos originais são as camadas inclementes de interpretação e teologização a que os textos foram submetidos ao longo dos milênios. A erudição cristã sujeitou ao seu escrutínio virtualmente cada milímetro da superfície de ambos os testamentos: revirou cada pedra, mediu cada til, pesou cada maiúscula e publicou suas anotações. Graças à intervenção onipotente dos comentaristas, é hoje em dia virtualmente impossível aproximar-se da Bíblia pelo que ela é, como quem se coloca diante do texto pela primeira vez. O resultado é que em vez de salvaguardar os sentidos originais, os exegetas conseguiram garantir que jamais nos aproximaremos legitimamente dele (pelo menos não pela via da leitura, e esta é parte da boa nova). Mesmo para aqueles de nós que sabem-na de cor, a Bíblia permanecerá para sempre um livro desconhecido. Pensamos tanto sobre ele que o esgotamos de qualquer significado. Interpretar a Bíblia é perder o Jogo, e nossa única chance seria esquecê-la.

Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo.

Ou,

Abracem a nova mentalidade inclusiva [porque o Reino foi inaugurado, e sua divina vocação é alterar todas as estruturas exclusivas do mundo], e cada de um vocês seja mergulhado na pessoa de Jesus, o messias, tendo em vista a absolvição das suas faltas, e receberão de presente [pela sua imersão na comunidade subversiva dos que foram tocados pela singularidade de Jesus] a lucidez do seu singularíssimo espírito.

É um instante momentoso, qualquer que seja a tradução a que você escolha recorrer. Porque o que está dito aqui é que os primeiros candidatos a seguirem a herança de Jesus depois de sua execução fizeram aos apóstolos uma pergunta exemplar e bastante prática – “o que uma pessoa deve fazer para honrar a obra e a herança de Jesus?” – e receberam uma resposta, para os padrões do cristianismo institucional, pouco ortodoxa: “abracem a vocação de mudar as estruturas do mundo” (arrependei-vos) e “sejam imersos na comunidade inclusiva que produz a incubação e a consequente lucidez do espírito” (e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo).

É uma resposta revolucionária e subversiva – isto é, inteiramente digna de Jesus – porque não inaugura e não cancela nenhuma religião, não introduz nenhum rito e não rebaixa-se a qualquer teologia. Se é certo que um dos objetivos essenciais do livro de Atos dos Apóstolos é delinear é o formato mínimo da experiência cristã, esta será sua mais frequente e consistente resposta: arrependimento e batismo – os quais, decodificados pela narrativa de Lucas, representam subversão da ordem exclusiva do mundo e imersão na comunidade inclusiva dos tocados pela lucidez singular (ou Espírito Santo) de Jesus.

E, como se verá, a nova comunidade se mostrará tão radicalmente inclusiva que não tomará qualquer passo para distinguir-se do judaísmo de seus primeiros adeptos. Os perplexos ouvintes de Pentecostes, precisamente como os cento e vinte discípulos antes deles, são judeus, continuarão se considerando (e se comportando) como judeus e – não menos importante – permanecerão sendo vistos como judeus pelos demais representantes do judaísmo. O arrependimento e o batismo não fará deles convertidos a uma nova fé, não mudará o seu livro sagrado e não alterará em uma vírgula a sua vocação. O que está nascendo não é uma nova religião, mas um novo e irresistível movimento que não tem precedentes e não pode ser adequadamente descrito – “a que compararei o reino de Deus?”. Uma religião muda a forma como um homem reza; a árvore que está nascendo nesta menor das sementes deverá ser capaz aninhar o mundo e acolher em seus ramos todos os homens.

– Porque a promessa – explica o pescador, ainda surpreso diante da sua própria disposição em não excluir ninguém das possibilidades que espreitam no futuro – pertence a vocês, e aos seus filhos, e a todos que estão longe. Pertence a quantos o Senhor nosso Deus chamar.


Paulo Brabo

sábado, 29 de maio de 2010

Um mundo além do perdão

Que o próprio Jesus tenha sido batizado por João (e não o contrário, como pediu este último) é um nó que dois mil anos de tradição não bastaram para desatar. E não se trata apenas do constrangimento de ver o homem sem mácula rebaixando-se ao batismo do arrependimento “tendo em vista o perdão dos pecados”. A noção de um Jesus sem pecado, embora tenha se tornado um conceito teológico essencial, não é mencionada diretamente nas narrativas do Novo Testamento. Antes das cartas de Paulo (mesmo que essas sejam, como normalmente se supõe, cronologicamente anteriores aos evangelhos) o tratamento que o assunto merece é no máximo transversal.

Mesmo que nos atenhamos à narrativa, no entanto, há escândalos. Em primeiro lugar porque, enquanto batizava, João apontava continuamente para a chegada iminente de um grande Outro – aquele de quem João não se considerava digno de desatar as sandálias – que aplicaria uma categoria mais aperfeiçada e espetacular de batismo, um batismo diante do qual o de João reduziria-se à condição de contingência ou prefiguração. “Eu, na verdade, os batizo em água, mas está chegando aquele que é mais poderoso do que eu; ele os batizará no Espírito Santo e com fogo (Lucas 3:16)1”. Os que desciam à água pela mão de João eram, portanto, impulsionados por essa esperança e por essa promessa: o reino de Deus está próximo, e o Grande Batizador Divino está chegando.

O constrangimento está em que o primeiro ato deste batizador revisto e atualizado, profetizado e reconhecido por João Batista (“aqui está o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”) é ser ele mesmo batizado por João, e assim o círculo se fecha da forma mais incompreensível. Como num desenho de Escher, a serpente alimenta-se da própria cauda, ou a mão desenha a mão que desenha a mão2.

Certo é que Jesus endossou João Batista do começo ao fim, tendo imprimido sua explícita aprovação, em atos e palavras, sobre o batismo de João e suas inerentes transgressões. Em todos os evangelhos o Filho do Homem inaugura sua atividade pública sendo batizado por João Batista (em Atos 1:22 os apóstolos reportam o início de sua própria aventura com Jesus não ao seu primeiro encontro com o mestre, mas ao “batismo de João”, o que refere-se provavelmente ao fato de terem sido todos batizados por ele). Mais tarde, tendo angariados discípulos (alguns deles subtraídos inadvertidamente de João), Jesus mesmo não batizava; por um lado ele não impedia que a multidão continuasse afluindo ao batismo de João, por outro mandava ou permitia que seus próprios discípulos administrassem o batismo com água.

Este paradoxo, do Grande Batizador Divino que abstinha-se de batizar, está explicado em parte pela própria profecia de João Batista. Em seu último discurso antes da ascensão, registrado neste mesmo livro de Atos, Jesus ecoa diretamente à mensagem original de João, dizendo aos discípulos que aguardem em Jerusalém a promessa do Pai, “porque, na verdade, João batizou em água, mas vocês serão batizados no Espírito Santo, dentro de poucos dias (1:5)”.

E, dessa forma, o tema do batismo amarra os livros de Lucas e Atos (via Lucas 3:16, Atos 1:15 e todas as referências intermediárias e posteriores) de modo ainda mais completo e formidável do que o tema das testemunhas. Mas em Atos fica finalmente declarado o quanto as coisas estão interligadas: “Vocês receberão poder, quando descer sobre vocês o Espírito Santo, e serão minhas testemunhas.”

A implicação clara em todas essas declarações e emblemas é que o batismo de João não envolvia qualquer transação ou alocação da lucidez do Espírito. O batismo de João era poderoso o bastante para perdoar os pecados, mas aparentemente o perdão dos pecados era pouco em relação ao que Deus tinha em mente. Jesus, guiado pela sua própria medida da lucidez divina, não queria apenas seguidores ou santos, queria testemunhas (e o que quer dizer com “testemunhas” devemos esperar que a narrativa vá deixando cada vez mais claro). Que o novo batismo deveria ser efetuado por Jesus já havia sido antecipado com suficiente clareza por João. A reviravolta (e isso só fica plenamente manifesto quando chegamos à orla da ascensão), está em que a administração desse novo batismo requer a ausência de seu aplicador. Para serem tocados pelo Espírito, os discípulos devem perder o toque de Jesus, e por uma excelente razão: o Espírito Santo é idêntico ao espírito de Jesus.

E finalmente, quando chega o momento de revelar a natureza do batismo do Espírito Santo, o autor (de Atos, ecoando o seu próprio Lucas) repete solenemente, ao mesmo tempo em que transforma, as imagens do batismo por imersão.

O texto esforçasse para deixar manifesto que o que está acontecendo é um batismo, mas um de uma estirpe nova e revolucionária. Como a água corrente que enchia o tanque batismal, o Espírito é “derramado” do céu até “encher toda a casa onde estavam sentados”. O aposento em que estão reunidos torna-se, nessa imagem, um recipiente cheio a ponto de transbordar. Uma vez mergulhados nessa solução, saturada das memórias e lealdades compartilhadas de Jesus, os presentes são imediatamente batizados, isto é, calibrados e equilibrados por ela. Numa osmose divina e instantânea, “ficam todos cheios do Espírito Santo” – isto é, passam eles mesmos à condição de recipientes. Estando cheios do Espírito, os discípulos tornam-se num golpe só efetivos portadores e potenciais distribuidores do conteúdo que carregam. Estão por um lado completos, por outro prontos para abraçarem outros.

É esse o milagre que os transportará ao inconcebível mundo além do perdão. Jesus não está com eles, mas está em cada um, e o reino de Deus nunca esteve tão próximo. Se o batismo no Espírito Santo é sua porta de entrada, sua palavra-chave é arrependimento. Leia +


Paulo Brabo

quinta-feira, 27 de maio de 2010

As tranguessões do céu

Para os demais evangelistas João aparece no deserto, adulto e com uma missão, como que do nada. É apenas Lucas – este mesmo Lucas de Atos – que oferece ao homem adulto uma história de origem e portanto uma premonição.

João é filho de um sacerdote, Zacarias, e de sua esposa Isabel, ambos avançados em idade e sem filhos, como Abraão e Sara; seu nascimento é anunciado por um anjo, como o de Ismael, como o de Sansão, como o de Jesus.

Sobre menino o anjo explica que “muitos se alegrarão com o seu nascimento”, porque ele será “cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe, e converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, o Deus deles”. Sua posturá servirá para cumprir a última profecia proferida no Antigo Testamento (Malaquias 5:6), pela qual Deus promete finalmente “converter os corações dos pais aos filhos”, isso (descobrimos agora) a fim de “providenciar um povo preparado para o Senhor”. Zacarias, ele mesmo cheio da lucidez do Espírito Santo, enxerga que seu filho “será chamado profeta do Altíssimo, pois irá adiante do Senhor, preparando o caminho para ele”, porque, graças à misericórdia de Deus, “a aurora virá lá do alto nos visitar”.

Esse menino, sobre o qual descerá pela última vez a Palavra do Senhor, salta “de alegria” ainda no ventre de sua mãe ao pressentir na saudação de Maria a estarrecedora proximidade do reino.

Essa tensão entre o antigo e o novo, entre o que foi prometido e o que virá, entre as velhas profecias e a nova luz, marcará a posição e o papel de João no Novo Testamento. Para Lucas, ainda mais do que para os demais evangelistas, João é a divisa simbólica entre dois mundos, representando ao mesmo tempo ponte de ligação e muralha de separação entre a Lei e as boas novas.

“A lei e os profetas vigoraram até João; desde então é anunciado o evangelho do reino de Deus (Lucas 16:16)”.

Então, antes que Jesus apareça nas cidades, o que acontece é que João aparece no deserto. O primo de Jesus vive como um outsider, inteiramente à margem da cultura reinante, mas usa essa sua postura marginal como credencial para sua posição de agente transformador. João é, afinal de contas, “a voz que clama no deserto” – e gritar no deserto, onde ninguém pode ouvir, é um contrasenso mas é também manifestação artística, ato de resistência e de contracultura, e portanto ato divino. Desde o tempo de Moisés, desde a sarça ardente que o fogo não consome e dos caminhos circulares debaixo do maná (e mesmo antes, nas peregrinações de Abraão e seus filhos que são como grãos de areia), Deus é aquele que sustenta a vida no deserto.

E logo no deserto há multidões, porque as pessoas escoam da Judéia e da Galiléia e de Jerusalém e de destinos ainda mais improváveis para desembocar nas margens do Jordão, onde João está apregoando uma nova e desconcertante mensagem, “o batismo de arrependimento para remissão dos pecados”.

“Arrependam-se”, João diz aos que recorrem a ele (precisamente como Pedro dirá quando estiver na sua posição – e podemos supor que os ouvintes de Pedro interpretarão sua injunção pelo que sabiam da mensagem de João), “porque o reino de Deus está próximo”.

Embora nunca se estenda sobre a natureza exata do reino de Deus ou sobre a natureza de sua proximidade (estará próximo no tempo? no espaço?), João está absolutamente convencido que o arrependimento é a única postura adequada diante da iminência de uma Pessoa (alguém “maior e mais poderoso do que eu”, que está para se manifestar e pode muito bem ser o Messias das profecias), pessoa que por sua vez precipitará um terrível Evento (que pode muito bem ser o juízo final, visto que “o machado já está posto junto à raiz das árvores; toda árvore que não produz bom fruto será cortada e lançada no fogo”).

Por associar sua mensagem a essa expectativa de transformação iminente e possivelmente definitiva, a onda de João é frequentemente catalogada entre os movimentos “apocalípticos” ou “escatológicos” – isto é, definidos pela sua preocupação com as últimas coisas e com as derradeiras medidas a serem tomadas antes do fim – dos quais houve muitos antes dele e permanecem tão frequentes que não conhecemos ainda o último.

O que todas as tradições concordam é que João representou uma novidade desconcertante e uma onda irresistível. Para o embaraço da religião institucionalizada do Templo e dos fariseus, “multidões” de judeus de todas as origens e de todos os matizes [1] iam até João, [2] confessavam os seus pecados e [3] eram batizados por ele no rio Jordão [4] para o perdão dos pecados”.

O embaraçoso estava em que nada havia de ortodoxo em qualquer uma dessas práticas.

Nada na Lei, na história ou na tradição prescrevia que adoradores afluíssem a um profeta errante e confessassem os seus pecados, e nada sugeria que poderiam beneficiar-se em alguma medida com isso. Como acabamos de ver, embora a Lei prescrevesse uma série de imersões rituais, eram todas realizadas sem assistência pelo próprio adorador; o novo método de João, que batizava ele mesmo os que vinham até ele, não tinha precedentes que o redimissem. Outra diferença fundamental: as imersões previstas na Lei estavam invariavelmente ligadas à pureza cerimonial, e deviam ser repetidas todas as vezes que o judeu devoto se visse embaraçado pela impureza ritual. Em contrapartida, o batismo de João, com seus requerimentos e benefícios, era oferecido uma única vez e de uma vez por todas diante da emergência e da urgência do Reino.

O mais severamente não-ortodoxo e escandaloso no batismo de João, no entanto, estava em sua sua aspiração a propiciar o perdão dos pecados. Nem a mais liberal interpretação da Lei poderia sugerir que alguma outra prática, que não os sacrifícios apresentados no Templo, pudesse prover a remissão de pecados – e eis aqui o profeta cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe, batizando gente, ouvindo suas confissões públicas e apresentando o batismo de arrependimento “tendo em vista a remissão dos pecados”.

Propor e promover um rito alternativo que mediasse o perdão divino era sustentar uma espécie muito grave de desobediência civil ou, neste caso, religiosa. Usar o ofício divino de profeta para contornar o serviço do Templo e suas minuciosas exigências não equivalia apenas a criticá-lo (como faziam, por exemplo, os essênios); era questionar por completo a sua legitimidade.

Não é à toa que essa postura tenha despertado a indignação de fariseus e saduceus, judeus particularmente comprometidos com a ortodoxia e com os escrúpulos do Templo, que foram sondar as obras do Batizador no Jordão e acabaram saudados por ele como “ninhada de víboras” – gente que, segundo João, usava sua religiosidade como manobra evasiva, na ilusão de poder “escapar da ira vindoura”.

O que resta portanto no batismo de João está em que, embora tivesse suas raízes fixas em expectativas e procedimentos anteriores, diferia desses ao ponto do escândalo e da transgressão. Lembrava os procedimentos prescritos para a limpeza ritual, mas separava-se deles porque a purificação que oferecia era interior e não exterior. Evocava as imersões previstas na lei e na tradição, mas se distinguia delas por seu caráter não-repetitivo e por ser administrado por um mediador. Era realizado no Jordão, que ecoava com a libertação do Êxodo e a posse da Terra, mas oferecia o perdão dos pecados fora de Jerusalém e longe do Templo. E, embora fosse administrado por João e seus discípulos, apontava para um grande e outro Mediador que estava ainda para chegar.

Tudo na mensagem de João existia no fio da navalha, na finíssima divisão entre continuidade e descontinuidade.

O problema para a religião institucionalizada de Jerusalém estava em que muita gente na massa inculta, não devidamente esclarecida nas necessidades e clarezas da ortodoxia, via esse novo e incômodo profeta como especialmente autorizado por Deus. E quem é Deus para autorizar novidades? Pelo contrário, é natural concluir que basta alguém oferecer liberdades em nome de Deus para demonstrar sua própria desqualificação.

Isso fariseus e saduceus enxergavam com clareza, mas a multidão se deixa desviar com tanta facilidade. Chegarão a seguir outro transgressor, um galileu que tentará justificar as novidades de João Batista com o absurdo argumento de que eram transgressões endossadas pelo céu (Mateus 21:25).

Como que para irritá-los, esse novo transgressor anunciará precisamente a mesma “boa nova” do “arrependam-se, porque o reino de Deus está próximo” que tanto incomodou-os no Batizador. E chegará ao extremo de sugerir que saduceus e doutores da Lei rejeitaram o propósito de Deus para suas vidas (como se isso fosse possível!) quando recusaram-se a submeter-se ao batismo de João (Lucas 7:29-30).

E, como que deliberadamente, como que para manchar logo de início a sua reputação e deixar muito claro a que veio, a primeira coisa que o novo transgressor fará em sua vida pública será identificar-se com a mensagem de João, sendo batizado por ele no rio Jordão, que àquela altura já se maculara com as impurezas de tantos.


Paulo Brabo

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A mesa universal e as redentoras transgressões

Tenho desejado ardentemente comer com vocês esta páscoa
antes da minha paixão; pois eu lhes digo que não a comerei mais
até que ela se cumpra no reino de Deus. Lucas 22:15,16

Toda subversão deve ser encenada: Jesus soube-o quando lavou os pés dos discípulos; São Francisco soube-o quando despiu-se literalmente diante da multidão e adotou uma vida descalça; Gandhi soube-o quando pendurou o terno e sentou-se diante da roda de fiar.

Os integrantes da comunidade do reino, que de tudo se despojaram, só não se despojarão da sua liturgia. Encenarão até o fim a sua mais característica subversão, porque não querem esquecer que é nisso que seu mestre tinha desejado ser lembrado: “perseverando todos os dias no templo, e partindo o pão de casa em casa, comiam com alegria e singeleza de coração”.

E, ao contrário do que nos tornamos habituados a pensar, a porção litúrgica da vida comum reside na segunda porção desse verso, não na primeira; está na mesa compartilhada e não no Templo. Como se verá, “perseverando unânimes todos os dias no templo” não quer dizer muito além de asseverar que os primeiros discípulos continuavam sendo unanimemente judeus. Nenhum deles encontrou incompatibilidade entre a vitalidade do arrependimento e a herança da espiritualidade judaica. Nenhum deles julgava ter adotado uma nova religião; não se consideravam “novos convertidos”, e com toda a probabilidade se mostrariam muito indignados se alguém sugerisse o contrário. Como estavam sempre juntos, e como estavam certos de que terem se dobrado à persuasão de Jesus não interrompia o fato de serem judeus – o próprio Pedro havia, afinal de contas, enfatizado em seu discurso o coração judaico de Jesus e da sua obra – continuavam a encontrar-se todos os dias no Templo de Jerusalém.

Não era em sua presença no templo que sua subversão era encenada, mas no impensável que faziam depois, comendo juntos de casa em casa com alegria e simplicidade, como quem habita um ensolarado final feliz ou uma incessante festa de casamento.

Sentar-se à mesa com alguém, em praticamente todas as culturas, é ato que pertence ao domínio do sagrado; em algumas tradições “comer juntos” envolve mais tabus, trâmites e privilégios do que dividir o ato sexual. Não é à toa que “companheiro”, que se origina no latim companis/cum panis, signifique “aquele com que se divide o pão”: comer com alguém é repartir uma plena horizontalidade, é reconhecer sem reservas uma identidade compartilhada. Dividir o pão é fundir a alma.

É justamente por isso que, em praticamente todas as culturas, a hora da refeição não é algo que se divida com todos. Convidar para comer esteve, desde sempre, associado a afinidade e critério. A mesa de cada um está por definição reservada para os amigos mais íntimos, para as relações mais bem lubrificadas, para os que habitam as proximidades do coração.

Não ignorando o poder dessa linguagem, Jesus tratou de subvertê-la, contando muitas histórias em que os convidados do banquete não são os nobres (com que todos queriam se ver associados) ou os amigos do anfitrião, mas os marginais, os despossuídos, os que não ocorreria a ninguém convidar para jantar. A aprovação de Deus, esclarece o rabi, é um banquete a que os ricos e poderosos não encontram ocasião de comparecer, mas que é revertido gostosamente em favor dos bêbados na sarjeta, das prostitutas da esquina e de todos que a vida largou desatenta pelo caminho.

Jesus encenou ele mesmo, e do modo mais exuberante, a provocação que suas parábolas prometiam. Porque, enquanto João Batista se mantinha no deserto comendo como um faquir, Jesus frequentava jantares e festas, fornecia bebida para banquetes de casamento e angariou (provavelmente com alguma justiça) a fama de comilão e beberrão1. Jesus não só sentava-se com pecadores e prostitutas, mas comia faceiramente com eles – e somente a segunda coisa era considerada mais inaceitável do que a primeira. Se comer é repartir horizontalidade, como suportar um homem de Deus que ousava partilhar a sua mesa – e portanto a sua identidade – com um bando de pecadores sem qualquer mérito?

A resposta o rabi forneceu muitas vezes e de muitas maneiras, mas resume-se sempre ao mesmo ponto: a ninguém Deus recusa um lugar à sua mesa, pelo que a ninguém deveríamos recusar lugar à nossa. Ser santo como Deus é santo não é adotar a suposta distância que Deus estabelece entre si mesmo e o mundo, mas adotar a ausência de critério que Deus emprega em sua relação com todos. Arrepender-se é escancarar as portas da vida e instituir o Grande Banquete Ininterrupto, em que todos os homens servem e onde todos os homens são bem-vindos.

Conhecedor do potencial redentor desse inæstimabile sacramentum, Jesus tratou de trazê-lo para o centro da sua mensagem, tornando o fulcro mais essencial da sua memória: façam isso todas as vezes que comerem e beberem; façam isso em memória de mim. A comunidade do reino não ignora que a mesa é local sacrossanto e seletivo; apenas confessa que, justamente por essas razões, só é concebível se for universal.

O grupo de romeiros de Pentecostes passa portanto a encarnar, inaugurando-a, a insubordinação com a qual o movimento cristão seria associado ao longo dos seus primeiros séculos de história: a da multidão que reúne-se em suas casas para comer – sem aplicar as mais básicas distinções entre ricos e pobres, nobres e destituídos, puros e maculados, homens e mulheres, amigos e desconhecidos2.

Essa mesa universal resgata, simultaneamente, os aspectos de transgressão e tabu com os quais o ato de comer está associado em muitas culturas, particularmente a judaica – e ao mesmo tempo abole e transcende esses aspectos.

Nenhum judeu ignorava que comer era ato tão sério e prenhe de consequências que ocasionara a expulsão de Adão e Eva do paraíso; ninguém desconhecia que comer era ato tão sacrossanto e cercado de responsabilidades que deixara na Torá a marca de inúmeras leis e interdições. Na cultura judaica a santidade, a transgressão e a identidade eram definidas em grande parte pelo que o judeu devia abster-se de comer; essa obediência com respeito à continência alimentar era para ser entendida como postura corretiva e testemunhal, sustentada em puro contraste à deficiência demonstrada por Adão e Eva nessa área – bem como a suas terríveis consequências.

Certo da ressonância dessa tradição, Jesus tomou providências para garantir que a mesa universal que legava aos seus seguidores se mantivesse, também nesse campo, celebração de uma atordoante subversão. Porque, ao fundamentá-la ao redor do consumo simbólico do corpo e do sangue de um ser humano, o fundador do Banquete Ininterrupto não poderia ter escolhido símbolos mais incômodos e provocadores.

No judaísmo o canibalismo era tamanho tabu que a Torá omite-se até mesmo de nomeá-lo como interdição, e Jesus não se esquiva em ordenar peguem e comam, este é o meu corpo; o consumo de sangue era ostensivamente proibido, do que dão testemunho as recursivas medidas instituídas para livrar de qualquer traço de sangue a carne destinada a consumo humano, e Jesus declara peguem, bebam, este é o meu sangue. E insiste, simplesmente insiste, que essa transgressão ritual deve ser repetida “todas as vezes que vocês comerem e beberem”.

Todas as vezes que comiam e bebiam, portanto, os integrantes da comunidade do reino “encenavam a subversão” que seu precursor havia encarnado em todos os aspectos. Alimentavam-se continuamente, por assim dizer, de tudo aquilo que representavam a pessoa, a postura e o destino de Jesus.

Beber o corpo e o sangue do Filho do Homem nessa transgressão litúrgica unia-os ao homem de Nazaré, mas também reportava-os simbolicamente a Adão e Eva e libertava-os deles. O consumo do fruto proibido na transgressão do Éden levara os homens a ganhar o mundo, mas haviam na transação perdido a Deus e uns aos outros; o consumo do corpo e do sangue na transgressão cristã levava os homens a reconquistarem a si mesmos e uns aos outros, e nessa comunhão restauravam o mundo e reconquistavam a presença divina. Passavam a habitar, e em suas próprias casas, o fulcro temporal e geográfico, parcial e ininterrupto, que Jesus chamara de reino de Deus.

O meio é a mensagem, e o meio apontado por Jesus para indicar sua mensagem foi o sonho de um mundo em que todos os homens comeriam juntos, celebrando continuamente uma simbólica transgressão e encontrando nisso uma comunal redenção. A mesa universal é sua liturgia.

E quando a horizontalidade for completa, quando ninguém for excluído, quando todos servirem a todos e todos estiverem servidos, então horizontal e vertical se fundirão sem qualquer distinção, e Deus será visto à mesa entre os homens. O mundo estará restaurado, e será o reino de Deus.


Paulo Brabo

sábado, 22 de maio de 2010

Por que escrevo sobre religião

UMA LEITORA ME perguntou: “Por que é que você, professor universitário, escritor, gasta tanto tempo com essas coisas da religião?” Ela pensava que eu, havendo lido Marx, Freud e Feuerbach, deveria dar um uso mais científico ao meu tempo e ao meu pensamento.

Minha resposta é simples: gasto o meu tempo com os sonhos das religiões porque, como disse Shakespeare, nós somos feitos de sonhos. A história é feita com sonhos. Todas as coisas materiais que fazem a vida da civilização são feitas com sonhos. Escrevo sobre a religião num esforço para acordar os que dormem.

Lembro-me da propaganda de um carro que vi, faz muitos anos, numa revista americana: era um conversível vermelho, sem capota, parado num bosque. Não há ninguém no carro, e as duas portas estão abertas.

A sedução – o motivo comercial para seduzir o leitor a comprar - se encontra precisamente naquilo que não se encontra na cena, mas apenas na imaginação. Se as duas portas estivessem fechadas, a mensagem seria simplesmente o carro vermelho sem capota. Se só a porta do motorista estivesse aberta, a imaginação completaria a cena: ele deve estar atrás de uma árvore fazendo xixi.

Mas as duas portas foram deixadas abertas. As pessoas que ocupavam o carro estavam com pressa. A imaginação não tem alternativas, as imagens se impõem: um homem e uma mulher. Onde estarão eles? Fazendo o que? Bem dizia Bachelard que aquilo que se vê não pode se comparar com aquilo que não se vê. Quem bolou essa propaganda genial sabia que a alma é feita de sonhos.

Veblen, economista, também conhecia a alma humana e por isso declarou que não compramos “utilidades”, coisas práticas, materiais. Compramos símbolos.

Isso que vou contar aconteceu no tempo em que a televisão fazia propaganda de cigarros. Cena silenciosa, sem uma única palavra: um bosque de pinheiros… Eu amo a natureza, amo os pinheiros, o perfume da sua resina. Os pinheiros cedem lugar a um regato de águas frias e cristalinas que corre sobre pedras. Eu também amo os regatos de águas frias e cristalinas. Uma campina verde florida.

Minha imaginação sugeriu logo que deveria ser capim gordura com o seu perfume único o que me levou para a minha infância em Minas. Cavalos selvagens em galope, pelo negro brilhante. Estava certo o presidente João Batista Figueiredo quando disse que o cheiro dos cavalos suados era melhor que o cheiro de gente suada. Leonardo da Vinci declarou que os cavalos são os animais mais belos depois dos homens. Cheguei a imaginar que seria possível produzir um perfume másculo extraído do suor dos cavalos. Nenhuma mulher o resistiria!

Aí entra o rosto de um vaqueiro, maxilar de noventa graus, barba de um dia por fazer -homem que é homem não se barbeia todo dia, isso é coisa de executivo-, com um cigarro entre os dedos, estilo Humphrey Bogart e as palavras, as únicas palavras: “Venha para o mundo de Marlboro!” Não, ninguém está falando em fumar! Está se falando de um mundo de pinheiros, regatos, campinas, cavalos -tudo isso faz parte do sonho que mora nas espirais de fumaça da imaginação…

O conversível vermelho com as duas portas abertas e o mundo de Marlboro pertencem ao mundo das fantasias religiosas. São sacramentos. Porque sacramentos são todas as coisas feitas com uma mistura de matéria e símbolos.

Você entende agora porque eu penso e escrevo sobre religião?


Rubem Alves
Mais uma dica do Pavablog.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Miséricordia

É COMUM se dizer, sobre o filósofo Kant (1724 – 1804), que duas coisas o encantavam: no universo, a lei da gravidade e, no mundo, a lei moral. Para mim, duas coisas me assombram: no universo, a solidão dos elementos e, no mundo, a misericórdia.

Não me refiro à falsa misericórdia, aquela que mais é uma alegria mesquinha que sentimos diante da miséria alheia e que é, na realidade, uma espécie de gozo infame a serviço dos recantos mais obscuros de nossa frágil alma.

Perdão, mas hoje vou falar de cabala (a mística medieval judaica). Digo “perdão” porque, hoje em dia, ela está na moda.

“Meu Deus, como amo a moda”, dizia a madame de Sévigné, em agonia. Deve-se evitar a moda. Infelizmente, “ensina-se” cabala por aí como se fora ela uma forma de escravizar Deus e o universo aos nossos desejos mesquinhos de sucesso. Cara leitora mística, atenção: se alguém se disser “professor de Cabala”, cuidado! Antes de pagar as aulas, cheque se ele tem um profundo conhecimento de hebraico (não basta ser fluente na língua). Se não for o caso desista.

Se quiser escravizar o universo aos seus mesquinhos desejos de sucesso, restrinja-se a alguma técnica energética barata. Deve haver uns dez caras no mundo que entendem de cabala e nenhum deles mora na Vila Madalena ou atende via web.

Um dos “galhos” da árvore da cabala é chamado “Hod”, que é traduzido por especialistas em história da cabala como “agradecimento”.

É nisso que penso quando lembro que respiro, que minha mulher e meus filhos respiram, que meus (poucos) amigos respiram e, às vezes, sorriem.

Muitos teólogos sejam judeus, sejam muçulmanos ou sejam cristãos afirmam que a única teologia verdadeira é aquela que agradece. O leitor pergunta: “Mas este colunista deve ser bipolar. Como pode escrever hoje isto, se, nas semanas passadas, parecia habitado pelo demônio da crítica triste do mundo?”.

Fácil responder essa. Não tenho diagnóstico de bipolaridade, mas quase sempre sou mesmo um crítico triste do mundo.

Conheço melhor a tristeza do demônio do que a beleza do mundo (acalme-se, leitor, uso a palavra “demônio” como metáfora) e, por isso, é que me sinto parte da humanidade.

Os humores variam, como as águas de um mar que responde a fúria da fortuna. Pela tradição judaica, Davi é o especialista na maior virtude hebraica antiga: a humildade. Em seus belos Salmos, ele canta a beleza de Deus e Sua misericórdia que escorre do Céu.

Muitos localizam esta misericórdia na mesma “árvore”, como sendo “Hesed” (as vezes também traduzida como “piedade”). Davi respira essa misericórdia, por isso ele é considerado o “preferido de Deus”.

Comentários rabínicos ao primeiro livro da Torá, “Bereshit” (na tradição cristã, Gênesis), contam uma história interessante sobre a relação entre a Justiça, a Verdade e a Misericórdia na origem da Criação.

Faço aqui a minha versão preferida dessa tradição: para mim a Verdade de Deus é Sua misericórdia. Estava Deus prestes a criar o homem e a mulher quando foi assolado por dúvidas terríveis. Chamou então alguns de seus assessores, a Justiça (próxima à ideia de julgamento ou “Din”, outro atributo divino na cabala) e a Misericórdia.

Pergunta Deus a eles se valeria a pena criar o homem e a mulher, levando-se em conta o que nós faríamos (o pecado). A Justiça se coloca contra a empreitada dizendo que nós não valemos o “investimento”.

Somos mentirosos, infiéis e orgulhosos. Seu voto seria contra. Já a Misericórdia vota a nosso favor. Diz que, mesmo sendo como somos, daríamos grande alegria a Deus nos poucos momentos em que seriamos capazes de ver, em meio à impenetrabilidade assustadora do nosso orgulho, Sua beleza.

Deus pensa e decide a nosso favor.

Todavia, talvez como forma de castigar a Misericórdia, que O convenceu a nos criar, Ele a despedaça contra o chão e a dispersa pelo mundo.

Assim sendo, ficamos submetidos, desde o alto, à desconfiança eterna da Justiça divina, ao mesmo tempo em que desesperados, arrastando pelo chão, buscamos os cacos da Misericórdia (ou da Verdade) que habita os recantos distantes do mundo e os detalhes infinitos da vida.

Por isso, dirão os sábios, Deus está no detalhe. Felizes aqueles que conseguem ainda contemplar a delicadeza desses detalhes. Toda vez que vejo a Misericórdia no gesto de alguém, me calo.


Luiz Felipe Pondé, via Folha de São Paulo

quinta-feira, 20 de maio de 2010

O Gênesis: Idem, Ibidem

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Foi no tempo de Sua iniciação científica, e devo dizer que o pré--projeto já parecia fadado ao fracasso. Como assim, “haja luz”? Francamente, Iaweh. Onde fica a metodologia? O referencial teórico? E a amostra de controle? Se não citar Antonio Severino, sinto muito — não me interessa se Você é o criador da ABNT.

Era evidente que o Senhor, a despeito de ser aquele que é, não havia lido a bibliografia obrigatória (GAUTAMA, 563 d.C.; VISHNU, 1254 a.C.; ALLAH, 570 d.C.; OLORUM, 1845 d.C.; e DARWIN, 1859). Se o tivesse feito, saberia que isso tudo já foi experimentado e devidamente descartado nos melhores círculos acadêmicos. Tomemos como exemplo o cronograma de trabalho, de risíveis sete dias — no último Ele ainda queria descansar às custas da Fapesp. No plano de marketing pessoal, chegou a declarar à imprensa que, ao apreciar sua obra, “viu que era bom”, ignorando assim toda e qualquer noção de objetividade inerente ao ofício.

A verdade é que o Universo foi apenas um mal-entendido no formulário de concessão de bolsas de pesquisa desta instituição. Deus, que é obviamente um iniciante, achou que precisava de toda essa parafernália planetária para criar um “universo significativo de amostragem”. E deu no que deu. Hoje ele tem claras dificuldades para manejar seus experimentos com um bilhão de chineses, sobretudo quando se trata de testes duplo-cegos — fica difícil driblar a onisciência.

No segundo dia, o Todo-Poderoso disse: “Que a terra verdeje de verdura”, e foi muito engraçado. No terceiro dia, fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como poder do dia e o pequeno luzeiro como poder da noite. Na quinta-feira, fervilhou a água de seres vivos e aproveitou para passar um café. Dali a pouco foi a vez de moldar os animais terrestres (ref. hipopótamo). No sexto dia, o que era pra ser uma pesquisa inútil, porém inofensiva, tornou-se um pesadelo para as agências governamentais que a financiavam. Deus criou o homem à sua imagem e, não contente, removeu uma costela do ser mencionado e a mergulhou, só por diversão, num amontoado de lama — exatamente como fez aquele sujeito com a orelha no lombo do rato. Então soprou. Sabe-se lá por que, o experimento deu certo: dali saiu uma mulher, instruída para ser fecunda, multiplicar-se e subjugar os outros animais que rastejam sobre a terra.

A seguir, passou a redigir o relatório de sua monografia, que começava assim porque Deus é prolixo: “Adotaremos o método intrínseco, estético e hermenêutico em sentido restrito (existencial-ontológico) e em sentido amplo (de interpretação inespecífica), partindo da exegese textual para a conclusão sobre o todo do Universo, método que se ajudará com o retórico-estilístico e o comparativista, todos se relacionando com o psicológico, o social e o histórico-cultural”. Percebam a utilização do plural majestático, que nesse caso é plenamente adequada. Além disso, vê-se que o Magnânimo estava confuso em todos os sentidos (tanto ontológicos quanto sintáticos). Há limites para a onipotência, e eles são as normas regulamentares para a apresentação de monografias.

Em todo caso, a hipótese inicial do Alfa/Ômega era simples: “Não vai dar certo”, escreveu, citando AVICENA, 1033 (que tentou transformar pão em ouro), e os partidários da busca pelo moto-perpétuo. A título de curiosidade, o Criador inseriu uma variante maléfica na redoma de testes: a serpente. O resultado dessa empreitada empírica pode ser resumido na seguinte resposta, transcrita pelo próprio Velho a partir de uma entrevista qualitativa com foco em história oral: “Não sei onde está Abel. Acaso sou guarda de meu irmão?”.

Abandonou-se, com isso, toda e qualquer metodologia razoável. Resignado, Ele decidiu radicalizar em nome da ciên­cia. Ora, apesar do que dizem, o Deus do Velho Testamento não é vingativo; é apenas um camarada curioso e interessado em estripulias empíricas. Planejou o dilúvio, por exemplo, para ver no que dava. Mandou um sujeito matar o próprio filho num teste de psicologia comportamental. Inventou um experimento quantitativo com nuvens de gafanhotos e mais meia dúzia de pragas que assustaram o faraó a valer. Enfim, fez o que bem queria, movido pela sede de saber.

Uma de suas maiores cobaias foi Jó, um mero aluno da graduação que sempre fora íntegro e reto, temia a Ele e se afastava do mal. O teste começou como um estudo sério, mas logo descambou para uma aposta inconsequente entre o Longânimo e um certo pesquisador diabólico. Visto que a vida de Jó era perfeita, o tal pesquisador disse ao Senhor que assim era fácil ter um assistente, e duvidou que Jó continuasse fiel caso caísse em desgraça. Seguro de sua popularidade, Deus deu carta branca ao rival para fazer o que quisesse com o pobre rapaz, que, aliás, nada tinha nada a ver com isso — leu toda a bibliografia optativa, cursou as aulas de estatística, sabia redigir os formulários etc. Aquilo não era justo. Pois o Tinhoso matou-lhe todos os bois, os servos, os camelos e os filhos, provocou um incêndio, cravou-o de feridas e ficou esperando. Jó hesitou, mas no final se manteve leal ao mestre, que aproveitou a ocasião para pedir-lhe um fichamento.

A história não seria tão trágica se Deus fosse uma entidade menos avoada. Enquanto escrevia a monografia propriamente dita, deixou seus objetos de pesquisa fugirem do controle. Em poucos milênios, enquanto Ele estava distraído, um camarada atacou o outro com um atum congelado, uma velhinha decidiu viver com onze cisnes em seu apartamento de 25 metros quadrados, uma universidade criou a disciplina “História do Cocô” e um glutão tentou comer o próprio peso em pipocas. Quando Deus terminou de escrever o Abstract, por fim, ergueu sua Santa cabeça e viu que estava tudo fora dos eixos. Havia demorado muitas eras para entender os padrões de citação bibliográfica relativos a verbetes de enciclopédia — também tinha certa dificuldade em ordenar alfabeticamente os autores SCHWARCZ, SCHARZ e SCHNITZLER. Lá embaixo, o caos reinava, livre de qualquer tentativa de controle científico.

Foi quando Ele teve uma grande ideia que lhe garantiu o ingresso no Doutorado e salvou (literalmente) a humanidade. Rascunhou o último capítulo de sua tese, intitulado: “O Apocalipse”, ou “A vindima das nações”. O objetivo era dar prosseguimento aos estudos de PESTE, 666; FOME, 2012; GUERRA, 2012; e MAGOG et al., 2082, pondo fim ao ciclo experimental sem, no entanto, cair no pessimismo. Aparentemente orientado pelo pesquisador citado na história acima (BESTA, 2012), ele redigiu: “Ficarão de fora [do céu] os cães, os mágicos, os impudicos, os homicidas, os idólatras e todos os que amam ou praticam a mentira”.

Foi assim que, com cavalos, trombetas e a danação eterna dos pobres mágicos, Deus fechou em grande estilo sua pesquisa “Criação do Mundo — Aspectos Pitorescos da Trajetória do Ser Humano sob a Ótica do Senhor de Todos os Exércitos”. Ganhou um glorioso dez — glorioso mesmo.


Vanessa Barbara é jornalista e escritora, autora de O livro amarelo do terminal e, em coautoria com Emilio Fraia, O verão do Chibo. Colabora com a revista piauí e edita o almanaque virtual A Hortaliça.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

As três regras da sátira cristã

“Na minha opinião, você deveria se matar.” Esse é o comentário mais duro que alguém já deixou no blog eu escrevo, StuffChristiansLike.net. Ninguém gosta de saber que algo que ela escreveu gere uma sugestão de suicídio. Mas esse não é o pior comentário que já recebi. Veja o que alguém escreveu depois de ler a introdução do meu livro: ”Foi difícil rir sentindo a tristeza de Deus ao ver a maneira feia que a Noiva de Cristo (a Igreja) se apresenta perto do dia do seu casamento.”

Quando se começa um blog explorando sátira e a fé, ninguém lhe diz o que fazer quando você é acusado de enfeiar a Noiva de Cristo. Mas depois de dois anos escrevendo nele, estas são as três regras que eu aprendi sobre a sátira cristã.

Se você é um cristão e quer ser engraçado, há duas opções. 1) Você pode ser brega. 2) Você pode ser amargurado. O primeiro envolve fazer humor com fotos de gatinhos ou arco-íris. Você tem que fazer muitos trocadilhos ou enviar para todos os seus contatos e-mails que terminam com uma criança fazendo alguma “malandragem”.

A outra opção é tornar-se cínico e crítico ao cristianismo. Você fala das músicas e dos filmes evangélicos e critica tudo com uma língua cheia de veneno. O problema dessa abordagem é que ninguém na história da humanidade jamais disse: “Sabe, a maneira como você detonou o cristianismo em seu blog realmente me ajudou a começar uma relação com Jesus Cristo que mudou minha vida . Obrigado por usar o seu cinismo para o Senhor”.

A terceira opção, muitas vezes inaceitável, é a sátira. Mas como ela difere do cinismo? Vamos rever a segunda regra.

Zombaria não é a mesma coisa que a sátira. Zombaria sempre tem uma vítima. A sátira não. A zombaria visa ferir alguém e deixar-lhe com uma contusão. A sátira não. Defino sátira como “humor com um propósito.” Meu objetivo é limpar a “sujeira” do cristianismo, para que possamos ver a beleza de Cristo. Eu faço isso com a sátira, que é um grande instrumento da verdade. É como um grande espelho: Você pega um problema e o aumenta e até deixá-lo grande o suficiente e bastante óbvio para todo mundo ver. Então você fica ao lado dele e pergunta: “Somos nós? Estamos bem com isso? É isso que significa ser Igreja? ” A outra grande diferença é que Deus odeia o escárnio.

Mas e a sátira? Acho que o Senhor realmente apresenta um pouco de sátira na Bíblia. No Salmo 1:1, lemos: “Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores” (ARA). Você consegue ver isso? Os escarnecedore estão relacionados com os maus, os ímpios. Mas os que usam a sátira ficam de fora. Em Números 11:23, Deus diz a Moisés: “Porventura tem-se encurtado a mão do Senhor? Agora mesmo verás se a minha palavra se há de cumprir ou não.”

Não falo hebraico, mas eu não posso acreditar que Deus estava perguntando a Moisés o real comprimento de seu braço. Afinal, Moisés não sabia. Acho que Deus estava mostrando a Moisés, com um pouco de sátira, que ele podia cuidar dele.

Para usar a sátira, você tem que saber como surpreender as pessoas. No livro Accidental Magic, Roy Williams escreve sobre algo chamado “área de Broca”. Broca é a parte do cérebro que filtra as novas ideias que você ouve. O cérebro gosta de associar as novas informações com informações antigas para que ele possa ter menos trabalho de se concentrar em novas ideias. Então, quando você ver uma bola vermelha, automaticamente a coloca na “gaveta de bolas vermelhas” em seu cérebro e pensa em outra coisa.

O desafio para os comunicadores é passar pela área de Broca. A melhor maneira é surpreender as pessoas. A sátira é algo fantástico para fazer isso. Por exemplo, há uma estação de rádio de Atlanta que toca todas as manhãs o que eles chamam de “pílula de inspiração”. É uma canção cristã edificante e a leitura de alguns versículos da Bíblia, mas é feito no meio da programação normal, no caso música estilo hip-hop. Em essência, eles dizem: “balance, Deus, balance.”

Notei que também, infelizmente, isso ocorre com muitos dos meus finais de semana. No sábado à noite, faço o que bem entendo. Domingo de manhã? Eu e Deus somos os melhores amigos. E na segunda-feira? Deus volta para o carro junto com a minha Bíblia.

Agora, se eu disser para uma multidão: “Hoje quero falar sobre os caminhos que atrapalham nossa vida e nos afastam da caminhada de fé”, a área de Broca entra em ação. Afinal, todos nós ouvimos isso antes. Mas se eu disser: “Hoje, vamos falar sobre ‘balance, Deus, balance’, você não achará uma gaveta para guardar essa ideia. Ninguém diz: “Puxa, mais uma vez? O Billy Graham já falou sobre ‘balance, Deus, balance’ um milhão de vezes. ”

A sátira é uma ferramenta de comunicação essencial. Em novembro de 2009 vi a comunidade que acessa meu site provar isso, levantando doações de US $ 30.000 em 18 horas para construirmos uma creche no Vietnã. Será que nós rimos? Sem sombra de dúvida. Toda vez que alcançávamos um determinado objetivo, um acessório como um cinto branco era adicionado ao nosso mascote do site, um líder de louvor metrossexual. Será que fizemos algo bom e sério sem sermos cristãos mal humorados? Sem sombra de dúvida. Acabamos levantando US $ 60.000 e pudemos ajudar a construir duas creches!

A sátira é uma coisa complicada. É difícil não cair na zombaria. Mas quando se anda nessa linha fina, mesmo quando alguém sugere que você deve morrer, será possível rir dele.


Jonathan Acuff,
Uma dica do Pavablog.

Qualquer discurso

Qualquer discurso que não seja marcado pela modéstia em sua pretensão de alcance, que seja construído sem aberturas conceituais, não consciente de sua provisoriedade e sem um profundo comprometimento com a indisfarçável tarefa humana de construir seu sentido de vida sem muletas metafísicas está fadado a nada dizer que gere interesse e faça sentido à vida humana.


Elienai Cabral Jr

domingo, 16 de maio de 2010

Olho quem me olha

Imagine uma prisão redonda como o estádio do Maracanã. Há vários andares de celas. Nenhuma possui porta, de modo que um único carcereiro, situado na guarita no centro da construção circular, controla sozinho o movimento de centenas de prisioneiros.

Este o modelo panótico de Bentham, descrito por Michel Foucault em Vigiar e Punir. Muitas penitenciárias o adotaram. Tive oportunidade de visitar uma delas, na Ilha da Juventude, em Cuba, construída antes de Revolução e, hoje, desativada.

Vivemos agora numa sociedade panótica. Em qualquer lugar que nos encontramos, um olho nos vê. Somos vistos; quase nunca vemos quem nos vê. Não me refiro apenas às câmeras discretas ou ocultas em ruas e prédios, elevadores e lojas. O mais poderoso olho é a TV, exatamente esse aparelho que julgamos decidir quando e o que veremos.

Ligamos a TV motivados por seu olho invisível; ele suscita em nós essa atitude. Antes de a emissora colocar no ar uma peça publicitária ou um programa, vários testes são realizados, de modo a assegurar ao anunciante ou patrocinador o êxito de audiência. Conhece-se o olhar alheio através de exaustivas pesquisas de opinião.

Isso influi inclusive na (des)qualidade da arte. Agora, o artista não cria a partir de sua subjetividade e imaginação. Antes, procura satisfazer o olhar do público. Ele se olha pelo olho do consumidor de sua obra. Sua fonte de inspiração não reside na ousadia de romper e ultrapassar a linguagem estética que o precede, de expressar os anjos e demônios que lhe povoam a alma, e sim na vontade de agradar o público, criar um mercado de consumo para a sua obra, ainda que à custa de banalizar o próprio talento. O olho promissor do mercado configura seu olhar no ato criativo.

Todo esse processo foi expressivamente tratado em obras como 1984, de George Orwell (1949), e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), filmado em 1966 por François Truffaut. O fenômeno atual mais expressivo é o Big Brother, que promove arrebanhamento dos telespectadores, faz todos se sentirem irmãos, igualizados pela imbecilidade voyeurista de observar o ritual canibalizador que ocorre no interior da casa.

Induzidos por esse sentimento egogregário, perdemos a singularidade. O olho do Grande Irmão nos olha peremptoriamente e nos exige um comportamento de rebanho humano.

Outrora havia uma economia de bens materiais institucionalmente separada de uma economia de bens espirituais. Desses últimos cuidavam padres e pastores, intelectuais e professores, artistas e escritores.

Agora, a indústria de entretenimento se encarrega da produção de bens espirituais, integrando-nos na família televisual. O avatar nos chega pela janela eletrônica. Os novos bens espirituais já não imprimem sentido altruísta às nossas vidas, e sim motivações egóticas de acesso ao mercado de produtos supérfluos, fama, beleza e riqueza. Somos impelidos a consumir, não a refletir. Sempre mais acríticos, nos tornamos ventríloquos manipulados pela ideologia midiática que repudia a solidariedade e exalta a competitividade.

Em A doce vida, filme de Fellini, a última cena mostra o fim da noite boêmia de gente da alta burguesia. Caminham todos, tropegamente, por um bosque em direção ao mar. Ao chegar à praia, a ébria alegria se choca com o imenso olho inerte de um monstro marinho (uma imensa água-viva) que os pescadores arrastam rumo à areia.

O olho olha aquela gente e gera angústia e medo, como se a despisse de sua falsa alegria e a interpelasse no fundo da alma.

É este olho crítico que tanto tememos. E quando ele emerge, os oráculos do sistema neoliberal tratam de tentar cegá-lo e afundá-lo. Ele ameaça porque funciona como espelho no qual o nosso olhar reverbera e olha a mediocridade na qual estamos atolados, movidos como rebanho pelo Grande Imã – o entretenimento televisivo centrado do estímulo ao consumismo.


Frei Betto

Uma proposta radical de espiritualidade

A espiritualidade na época de Jesus era avaliada pela estética. Em especial para os fariseus, grupo sectário dentro do judaísmo, tudo o que importava era cumprir um programa de aparência exterior. Qualquer coisa que fugisse daquele padrão por eles estabelecido os agredia e era considerada uma heresia.

Os tempos mudaram, mas o modo como se avalia a espiritualidade de alguém, não. Ainda se usam as mesmas medidas dos fariseus contemporâneos de Jesus. Ainda se valoriza uma espiritualidade apenas estética. Ainda há melindres e preconceitos mil. Ainda se julga pela aparência.

Jesus faz uma proposta muito, mas muito mais radical de espiritualidade: amar a Deus com todas as suas forças, entendimento e de todo o coração e ao próximo como a si mesmo. Tornar-se um cristão não é converter-se a uma doutrina, mas ao amor.

Jesus quebrou os paradigmas da época para viver uma espiritualidade baseada tão-somente no amor, que é a graça. Ele disse algumas vezes que veio para salvar e não para condenar, veio para os doentes e não para os (que se acham) sãos.

Isso fica bem claro quando ele dialoga tranquilamente com uma mulher samaritana (o que era proibido aos “homens de bem” da época), quando, em vez de dispensar uma multidão faminta, sente compaixão dela e a alimenta, quando recebe a unção por uma “pecadora” que chora aos seus pés e os enxuga com os cabelos, quando ele perdoa uma mulher que a turba estava disposta a apedrejar.

Tem, pois, Jesus, autoridade para nos fazer um chamado radical, para viver uma espiritualidade baseada no amor. Espiritualidade cristã é saber amar. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. Lembrando que o próximo a ser amado é a minha família, meus amigos, meus irmãos, mesmo pessoas desconhecidos e até inimigos.

O chamado é para um amor semelhante ao de Deus, que não cobra nada, não cobra desempenho, apenas se oferece. É aquele amor que cobre uma multidão de pecados. Que não se importa em ter uma verdade superior e implacável, mas que apenas ama. É um amor que não reprova todos ao redor, mas apenas ama.

Desconfie de quem mantém uma estética espiritual e religiosa irrepreensível, mas fala de outros de maneira impiedosa e implacável. Os fariseus saíam de suas orações e jejuns para planejar o assassinato de Jesus. Quem ama, ama a despeito dos muitos defeitos dos outros e reconhece as suas próprias fragilidades e limitações. Quem ama sempre tem uma palavra de apreço, de compaixão e de misericórdia, porque a boca fala do que o coração está cheio.

Com indivíduos conscientes dessa radicalidade do amor, a igreja deve ser uma comunidade de amor. Não um amontoado de gente implacável e sem misericórdia. Não é um museu para santos, mas um hospital para pecadores, como disse Brennan Manning. Um lugar que seja um oásis de amor, em meio a um deserto de indiferença, onde com graça, todos, indistintamente, sejam acolhidos. E isso é muito radical.


Marcio Rosa

sábado, 15 de maio de 2010

A religião desconectada da vida é irrelevante

A religião contemporânea responde aos atuais questionamentos das pessoas? O cristianismo dos dias de hoje oferece respostas razoáveis? A igreja cristã, em especial a evangélica, tem respostas relevantes para a vida das pessoas?

Faço esses questionamentos porque tenho a impressão de que a igreja tem sim várias respostas e, pretensamente, para quase tudo, mas temo que tais respostas não se encaixem nas perguntas que as pessoas estão fazendo no mundo de hoje. O mundo mudou e as inquietações também. O mundo continua inquieto, as pessoas continuam querendo obter respostas, mas é preciso tentar discernir quais são essas inquietações.

Corre-se o risco de a religião e a igreja ficarem desconectadas da vida, totalmente irrelevantes para o cotidiano das pessoas, sem nenhum impacto positivo no mundo. Um discurso vazio de significado, distante mesmo das mais profundas necessidades humanas. Algo que já não causa mais nenhum estranhamento ou encantamento, nenhum conforto ou desconforto existencial.

A mensagem apresentada por Jesus não passava despercebida por ninguém que a ouvia, porque a quem ela não encantava, ela escandalizava. Trazia conforto para os marginalizados e excluídos, mas também desconforto para todos, porque os fustigava a romper antigos paradigmas e ter uma nova visão do mundo e da vida. Jesus desvelou a hipocrisia dos donos da religião de sua época e denunciou sua irrelevância. Pior, além de irrelevante, Jesus ainda mostra que em vez de produzir vida, a religião estava encalacrada em processos de morte, em vez de libertar as pessoas, estava submetendo-as a um horroroso tipo de escravidão em nome de Deus.

Então fico muito preocupado que isso esteja se reproduzindo na atualidade, bem diante de nossos olhos. Instituições e discursos religiosos que em vez de produzir vida, anula a vida das pessoas, uma vez que proíbe qualquer possibilidade de prazer e contentamento. Em vez de libertar, aprisiona, agrilhoa com ameaças, medo, pavor do castigo da divindade. Proíbe-se até mesmo de pensar. Só se pode reproduzir o pensamento do clero ou dos líderes, mas não se pode pensar livremente.

Será esse o papel da religião? Será essa a boa notícia anunciado por Cristo? Acredito que não. A mensagem evangélica, genuinamente cristã, deve produzir vida, liberdade, e é essencialmente uma mensagem de amor. Qualquer religiosidade que não seja promotora de vida, justiça, amor e liberdade não pode ser considerada cristã e deve ser repensada e reformulada.

Que tenhamos a sensibilidade de ouvir mais o mundo, reformular nossa teologia a partir da proposta de Cristo e, de maneira conectada com a vida, oferecer não respostas definitivas e verdades absolutas, mas pistas para uma vida com significado relevante, para uma caminhada bonita de promoção de justiça, liberdade, solidariedade e amor. Assim nos ajude Deus.


Marcio Rosa

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Abandonando as ilusões

Muitas pessoas buscam segurança na religião. Mas segurança, como uma forma de blindagem contra todos os percalços da vida é uma ilusão. E há muita gente iludida. Vendedores de ilusões não faltam, prometendo uma vida sem nenhum incidente, livramentos no último momento, uma vida realmente blindada. Como se Deus fosse um Super-Homem, sempre a aparecer no último momento para nos livrar a cara. Mas isso é uma ilusão.

Por isso é que é preciso se desiludir. Nesse caso, desiludir-se é uma coisa boa. Não é algo confortável, mas necessário e bom. Mas por não ser confortável, muitos preferem continuar na ilusão. Como aqueles que tiveram a opção de tomar a pílula vermelha e sair da Matrix (no célebre filme de mesmo nome), ou seja, sair do domínio de um mundo irreal, virtual e ilusório. Quem viu o filme, se lembra que alguns decidiram continuar num mundo de mentira. A pílula azul era para continuar na ilusão. A pílula vermelha significava a dolorosa caminhada do conhecimento e da maturidade.

Jesus não vende uma ilusão. Não doura a pílula, não escamoteia sua mensagem com meias palavras. As palavras de Jesus não têm absolutamente nada a ver com a ilusão que muitos procuram, de uma vida sem sobressaltos, rodeada de livramentos, sem enfermidade, sem acidentes, previsível. Ele não parece oferecer segurança para seus discípulos. Segurança existencial sim, mas não aquela segurança como garantia de uma vida absolutamente sem percalços. Ele disse: “No mundo tereis aflições”.

Basta olhar. Basta ser um tantinho realista para perceber que a vida é cheia de sobressaltos. O chamado de Jesus é para uma caminhada em que se enfrenta corajosamente a vida em todas as suas dimensões. Eu sei, reconhecer isso dói. É como aquela pessoa que reluta em assumir-se adulta, porque a maturidade tem seus desafios, a criancice exige menos responsabilidades, mas é necessário encarar os fatos.

Para isso é preciso se desiludir. Abandonar a ilusão e encarar a realidade. Não é desencanto, que é o mesmo que desesperança. Mas desilusão, abandono de uma ilusão pueril, infantil, de negação da própria humanidade e da realidade da vida. Mas nunca desencanto, pelo contrário, só quando houver desilusão, ou seja, o abandono das ilusões, poderá haver um verdadeiro encantamento pela vida e uma verdadeira, madura, esperança em Cristo Jesus.

Por isso que há tanta gente desiludida, no mau sentido, com Deus. Na verdade sem nenhuma esperança mais em Deus. Porque lhe prometeram algo que nem Deus prometeu: uma vida blindada.

O convite de Jesus é para uma jornada de fé, em que enfrentamos a vida com coragem. O exemplo dele mesmo é retumbante, sendo Deus feito homem, enfrentou com coragem o calvário, a cruz. Ficamos, pois, num mundo sem garantia alguma? Não, há uma garantia maravilhosa para aqueles que decidem enfrentar corajosamente a vida, sem ilusões: a de que Ele estará conosco todos os dias, até o fim dos dias. E isso não é uma ilusão.


Marcio Rosa

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Quando é possivel ouvir a voz de Deus

Tem umas coisas na vida que começamos a fazer apenas para superar os próprios limites e com isso obter satisfação pessoal. Eu coloquei na cabeça que vou correr uma maratona. Tive inspiração num dos meus mentores, Ricardo Gondim, que já correu várias maratonas e serviu-me de exemplo. É algo meio insano, correr 42 km e 195 metros é agressivo ao corpo, antinatural até. Mas é uma superação.

Quando comecei a correr, há uns dois anos e meio, quase morri ao completar dois quilômetros. Pensei que jamais correria a “9 de julho”, de 10 km. Insisti nos treinos e, no ano passado completei a corrida do aniversário de Boa Vista. Inscrito para uma maratona que vai acontecer em outubro deste ano, comecei um treino mais sério, auxiliado por um especialista. De quando em quando temos que fazer um longão, treinos de longa distância, no jargão dos maratonistas.

Dia desses, eu e o meu treinador colocamos como alvo a distância de 25 km. Seria a primeira vez que completaria tal percurso. Para tanto é necessário que haja hidratação, o corpo perde muito líquido através da transpiração e a reposição é imprescindível. Chamei dois amigos para acompanharem a corrida de bicicleta e levarem a água para mim e meu treinador. Foram o Felipe e o Kyldery, dois jovens que freqüentam a mesma igreja que eu. A gentileza deles fez toda a diferença, e não só pela água, como vou deixar mais claro logo adiante.

Há algum tempo descobri que nossas experiências com Deus, perceber Sua presença, ouvir Sua voz, não acontecem só nos ambientes religiosos. Aliás, as epifanias, essas percepções de Deus, acontecem mesmo no cotidiano, na vida real, fora dos momentos e rituais religiosos. Pois tive uma dessas epifanias naquele domingo de manhã, enquanto corria. Eu ouvi a voz de Deus.

Quando cheguei na altura do 21º km eu já estava além dos meus atuais limites. A respiração estava bem, mas minhas pernas doíam muito, estavam pesadas e as articulações latejavam. Para completar, peguei uma avenida em que o vento estava contrário. Parece ridículo dizer isso, mas a essa altura ter um vento contrário faz sim diferença, você tem que fazer um esforço adicional, quando o corpo já está cansado.

Lá estavam o Felipe e o Kyldery me esperando para entregar a garrafinha d’água. Meu treinador, mais rápido e mais resistente, já tinha saído do meu campo de visão. Como não estava com sede, pedi que os meninos me encontrassem na próxima rotatória. Foi quando o Felipe perguntou como eu estava. Gritei que o corpo doía todo e que o vento ainda estava atrapalhando. Ele respondeu: “É assim mesmo, afinal são 25 km, eu estarei lá na frente te esperando”, depois pegou a bicicleta e foi embora.

Corri os próximos dois quilômetros chorando. Pude perceber que Deus diz exatamente a mesma coisa a nós. Algo como: “a vida é assim mesmo, você tem e terá dores, o vento pode atrapalhar, mas isso faz parte da vida. Só não esqueça que eu estarei por aqui, estarei logo ali na frente te esperando”. A certeza que nos move não é a de que Ele vai nos livrar das dores, mas que estará ao nosso lado. É isso que nos renova as forças para prosseguirmos na maratona da vida.

A voz do Felipe, naquela manhã, foi para mim como a voz de Deus.


Márcio Rosa

Áspero amor

Áspero amor, violeta coroada de espinhos,
cipoal entre tantas paixões eriçado, lança das dores,
corola da cólera, por que caminhos
e como te dirigiste a minha alma?

Por que precipitaste teu fogo doloroso, de repente,
entre as folhas frias do meu caminho?
Quem te ensinou os passos que até mim te levaram?
que flor, que pedra, que fumaça
mostraram minha morada?

O certo é que tremeu noite pavorosa,
a aurora encheu todas as taças com teu vinho
e o sol estabeleceu sua presença celeste,

enquanto o cruel amor sem trégua me cercava,
até que lacerando-me com espadas
e espinhos abriu no coração um caminho queimante.


Pablo Neruda

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Amor livre

Inventaram uma expressão; uma expressão que é como mistura de água e óleo em duas palavras: “amor livre”, como se um amante alguma vez já tivesse sido ou pudesse algum dia vir a sê-lo. É da natureza do amor prender a si próprio... Os sábios modernos oferecem ao amante, com uma risada falsa e amarga, as maiores liberdades e a mais completa irresponsabilidade... Dão-lhe todas as liberdades exceto a liberdade de vender a sua liberdade, que é a única que o amante deseja.

Temos um retrato vivo desse estado de coisas na brilhante peça de Bernard Shaw The Philanderer (“O galanteador”). Charteris é um homem sempre esforçando-se por ser um amante livre, que é o mesmo que esforçar-se por ser um solteiro casado ou um negro branco. Perambula numa busca faminta por certo tipo de excitação que só poderá obter quando tiver a coragem de parar de perambular.


G.K. Chesterton

terça-feira, 11 de maio de 2010

Arrependimento, além dos pecados individuais

Encerramos o “intervalo lúdico” brasileiro, que começou no Natal e terminou no Carnaval, começou com a fé cristã e terminou com a festa pagã, a revelar as contradições de uma cultura sem síntese e com sincretismo, em que a racionalidade moderna, as marcas do Cristianismo, o esoterismo, a superstição e a idolatria convivem com o bacanal (culto a Baco) de calendário.

Agora, depois do descanso de uns e dos excessos de outros, finalmente começamos o “Ano Brasileiro”. Para as Igrejas Históricas, encerramos a Quadra da Epifania, com a ênfase em um Messias que não veio apenas para Israel, e, sim, para as nações, e iniciamos a Quadra da Quaresma, centrada na vida, obra vicária e ressurreição de Jesus Cristo, na nossa consciência como pecadores, em um olhar sincero para o interior do nosso ser, e uma reafirmação das grandes verdades da fé.

Jesus foi para o deserto, para ser tentado, e saiu vencedor contra satanás, prefigurando os nossos desertos, as nossas lutas espirituais e as nossas vitórias. Temos, porém, de evitar o individualismo da perspectiva da cultura ocidental contemporânea, em que, por decorrência, a consciência de pecado se esgota nos pecados individuais de cada um, e recuperar o ensino bíblico do pecado coletivo, social, institucional: famílias, tribos, cidades, nações, também pecam como coletividades, e o ministério profético aponta também para os pecados coletivos e chama essas coletividades ao arrependimento.

Lamentamos que o ministério profético tem-se enfraquecido na missão da Igreja, em virtude das propostas de missão semi-integral importadas da América do Norte, onde o profetismo é rejeitado ideologicamente ou associado com uma conduta antipatriótica diante da idolatria nacional.

O mundo está pecando, as nações estão pecando, nossa nação está pecando. Teremos a coragem para exercer o ministério profético diante dos poderes e dos poderosos, chamando os pecados pelo nome e chamando os poderes e os poderosos ao arrependimento? Com que autoridade moral cumpriremos esse mandado do Senhor, se não tomamos consciência do pecado do divisionismo, dos cismas, das heresias, ou com os mesmos somos indulgentes ou fatalistas? Seremos capazes de assumir os pecados coletivos da Igreja, clamarmos por um arrependimento e por mudança?

Se ficarmos apenas nos pecados e no arrependimento individual estaremos sendo desobedientes, parcializando o conteúdo e a amplitude da nossa mensagem, e, no fundo, contribuindo para a permanência do mal.

Vivamos a Quaresma na leitura da Bíblia, na devoção pessoal, nos ritos da Igreja e no clamor profético diante do pecado da injustiça, da violência, da exploração, da desonestidade, da idolatria e da imoralidade do século e da pátria terrena. E no acerto de contas com a verdade, com a realidade do dilacerar do Corpo Místico de Cristo e com o ministério do filho do pai da mentira.

Quaresma é um novo tempo, e um tempo diferente. Que o espírito desse tempo faça uma diferença em nós e por meio de nós. Da Quarta-feira de Cinzas (com Cinzas) ao Domingo da Ressurreição, encetemos uma profunda peregrinação existencial nos mistérios da fé.

Que Ele abençoe a todos!


Robinson Cavalcanti

segunda-feira, 10 de maio de 2010

No Brasil futebol é religião

Os meninos da Vila pisaram na bola. Mas prefiro sair em sua defesa. Eles não erraram sozinhos. Fizeram a cabeça deles. O mundo religioso é mestre em fazer a cabeça dos outros. Por isso cada vez mais me convenço que o Cristianismo implica a superação da religião, e cada vez mais me dedico a pensar nas categorias da espiritualidade, em detrimento das categorias da religião.

A religião está baseada nos ritos, dogmas e credos, tabus e códigos morais de cada tradição de fé. A espiritualidade está fundamentada nos conteúdos universais de todas e cada uma das tradições de fé.

Quando você começa a discutir quem vai para céu e quem vai para o inferno, ou se Deus é a favor ou contra à prática do homossexualismo, ou mesmo se você trem que subir uma escada de joelhos ou dar o dízimo na igreja para alcançar o favor de Deus, você está discutindo religião. Quando você começa a discutir se o correto é a reencarnação ou a ressurreição, a teoria de Darwin ou a narrativa do Gênesis, e se o livro certo é a Bíblia ou o Corão, você está discutindo religião. Quando você fica perguntando se a instituição social é espírita kardecista, evangélica, ou católica, você está discutindo religião.

O problema é que toda vez que você discute religião você afasta as pessoas umas das outras, promove o sectarismo e a intolerância. A religião coloca de um lado os adoradores de Allá, de outro os adoradores de Yahweh, e de outro os adoradores de Jesus. Isso sem falar nos adores de Shiva, de Krishna e devotos do Buda, e por aí vai. E cada grupo de adoradores deseja a extinção dos outros, ou pela conversão à sua religião, o que faz com que os outros deixam de existir enquanto outros e se tornem iguais a nós, ou pelo extermínio através do assassinato em nome de Deus, ou melhor, em nome de um deus, com d minúsculo, isto é, um ídolo que pretende se passar por Deus.

Mas quando você concentra sua atenção e ação, sua práxis, em valores como reconciliação, perdão, misericórdia, compaixão, solidariedade, amor e caridade, você está no horizonte da espiritualidade, comum a todas as tradições religiosas. E quando você está com o coração cheio de espiritualidade, e não de religião, você promove a justiça e a paz. Os valores espirituais agregam pessoas, aproxima os diferentes, faz com que os discordantes no mundo das crenças se deem as mãos no mundo da busca de superação do sofrimento humano, que a todos nós humilha e iguala, independentemente de raça, gênero, e inclusive religião.

Em síntese, quando você vive no mundo da religião, você fica no ônibus. Quando você vive no mundo da espiritualidade que a sua religião ensina – ou pelo menos deveria ensinar, você desce do ônibus e dá um ovo de páscoa para uma criança que sofre a tragédia e miséria de uma paralisia mental.


Ed René Kivitz

domingo, 9 de maio de 2010

Os bonzinhos e bem-comportados são uma desgraça de coisa nenhuma...

Sem agenda de sacerdote e levita, façamos o que tem de ser feito!

Soa como loucura hoje, no meio desses mega problemas, os quais envolvem tudo de tudo, do meio ambiente à perturbação da mente humana, pensar que um grupo de discípulos de Jesus pode ainda fazer qualquer sentido no mundo.

No entanto, se não fossemos judeu-evangélicos, sentindo-nos em relação ao Evangelho exatamente como alguns se sentiram em relação a ficarem em Jerusalém ao invés de irem ao mundo pregar a Palavra, existindo com a síndrome dos peixes de aquário, com complexo de passarinho de gaiola, sofrendo da sensação de produtividade de um hamster em roda de gaiola, contentes com a embaixada social da associação igreja, e dando banana para o mundo perdido, saberíamos que apesar de nossa fraqueza, incapacidade e inexpressividade, se fossemos às ruas, becos, encruzilhadas da terra, e todos os guetos, grupos e antros sociais, e apenas pregássemos, sem fixação em púlpitos, e sem crer que ministério só acontece dentro da “igreja” e de crente para crente, mas, muitos antes disso, como algo que acontece no caminho, e como resultado da paixão de cada um por Jesus, e isso feito em amor amigo e fraterno entre eles, geraria como resultado uma revolução simples, barata, poderosa, em cada canto da terra, e sem astros como atrações.

Se parássemos de ficar falando de Deus, estudando Deus, compreendendo Deus, defendendo Deus, trabalhando em escritórios de Deus, em entidades de Deus, em assembléias para tratar das coisas de Deus, sem comprar ou vender terreno para Deus, sem perder todo esse tempo “com Deus”, e, como o samaritano, sem agenda de sacerdote e levita, apenas fizéssemos o que tem de ser feito, e vivêssemos o fruto genuíno do Evangelho em nós, sem temor quanto a pregar, a orar com necessitados em qualquer lugar, até na sauna — então, subitamente veríamos que hoje mesmo, algo sem paralelos aconteceria na Terra.

Para isso também é fundamental parar de ficar explicando Deus para os religiosos assumidos e definidos. Pregar para cristãos de casca grossa não é cumprir a grande comissão de Mateus 28. É distração do inferno nos afastando para pregação a quem quer ouvir.

Provavelmente 95% da energia gasta pelos “cristãos” seja expendida em discussões entre “cristãos”. E no fim do dia a pessoa sente que se dedicou à obra de Deus. Tudo engano. São apenas os Templários modernos procurando o seu Santo Graal.

“Levanta. Toma teu leito, teu púlpito e tua algema de microfones, e anda enquanto é dia!”


Caio Fabio

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Notas para uma leitura de Paulo

Se Jesus nos ensinou a sermos homens para nos tornarmos filhos de Deus, Paulo nos ensinou a fazer uma ampla releitura da cultura e da história de modo a salientar a abrangência, a singularidade e a relevância do evento messiânico. Do mesmo modo que Paulo achou necessário empreender uma reinterpretação radical do judaísmo a fim de destacar (sem esgotá-los) os significados da obra de Jesus, devemos com o mesmo propósito sujeitar a uma reinterpretação radical o cristianismo e portanto nossa própria cultura. Nesse sentido são inteiramente válidas as críticas “pós-modernas” à história do cristianismo e a uma leitura tradicional ou condicionada do texto bíblico, mesmo quando o alvo dessas críticas é o caráter historicamente condicionado do próprio Paulo. Nenhum discurso é capaz de esgotar aquilo de que Jesus nos libertou ou as implicações da vida, morte e irradiação de Jesus para a nossa postura e nossa disposição cultural em cada momento da história; o Apóstolo seria o primeiro a concordar.

Paulo nos ensina não apenas que a elucidação de Jesus não alcança sua consumação no discurso de Paulo, mas que toda palavra, sendo em alguma medida proferida pela carne, será incapaz de adequadamente representar as implicações do reino, porque a carne é historicamente condicionada. Só o espírito, que sopra onde quer, poderá infundir na compreensão contemporânea da boa nova a suficiente graça. A letra mata, mas o espírito confere vida. O reino não consiste na palavra, cujo significado qualquer um pode sequestrar, mas na pura e intangível e subversiva e cavalheiresca e gentilíssima e inextinguivelmente generosa Intenção que é seu poder.

Nos primeiros séculos alguns cristãos chegaram à conclusão que para sobreviver o cristianismo requeria incessante defesa diante de ideias que competiam com ele pela primazia, e se tornaram por essa razão apologistas/defensores. Nas últimas décadas alguns cristãos chegaram à conclusão que para que a pérola de Jesus possa ser apreciada em sua pureza e singularidade, o próprio cristianismo não deve estar imune a críticas e ataques de dentro e de fora. Os primeiros achavam que ser como Paulo é tornar-se argumentador como ele; os últimos, que ser como Paulo é aprender com ele a exaltar a singularidade de Jesus em detrimento de todo o resto. O que confirma a validade do reino não são as muralhas de discurso que os articulados levantam para protegê-lo, mas a inargumentável irradiação de Jesus que despejam no mundo os menores de seus discípulos. Importa que Jesus cresça e que o cristianismo – abstração que Paulo provavelmente não reconheceria – diminua.


Paulo Brabo

sábado, 1 de maio de 2010

O que fode com o cristianismo somos nós

Tenho um amigo que é um santo secular, absolutamente sem religião, que concilia as façanhas de ser homem de família, artista irretocável e portador das boas novas aos pobres (sendo que eu, naturalmente, não sou nenhuma dessas coisas). «E você, Paulo, tem heróis?»Certa vez esse sujeito estava falando comigo sobre outro cara, amigo dele, que ele considera ser ao mesmo tempo artista mais notável e muito mais engajado nas questões sociais do que ele mesmo, um cara que meu amigo tem por seu herói pessoal.

Nesse momento ele parou o seu relato para perguntar:

– E você, Paulo, tem heróis?

Apanhado de surpresa, ocorreu-me responder de modo ao mesmo tempo provocativo e sincero. Ergui uma sobrancelha e arrisquei, como se estivesse em grande dúvida:

– Jesus?

– Jesus não vale – exigiu meu amigo. – Jesus é o herói de todo mundo.

Achei aquilo fascinante, tanto a noção de que Jesus pudesse ser o herói secreto daqueles que não usurpam o seu nome quanto a ideia subjacente, de que mesmo quem admira Jesus carece sensualizá-lo, encontrar-se efetivamente com ele numa pessoa de carne e osso que adequadamente encarne os seus valores e desafios. Eu conhecia uma pessoa assim, o Néviton Marci, mas antes que pudesse mencionar o nome dele meu amigo avançou seu argumento. Sabendo que minha menção a Jesus tinha sido em grande parte uma provocação sobre sua postura arreligiosa, ele prosseguiu:

– E você sabe muito bem que eu tenho um relacionamento de amor platônico com o cristianismo – e, para explorar todas as possibilidades da metáfora, arrematou: – Eu não fodo com o cristianismo como vocês fazem.

Eu, que nunca tinha visto meu amigo recorrer a um palavrão, tive de render-me imediatamente a sua lógica, sua lucidez e sua indignação. Porque quanto mais nós cristãos tentamos foder com o cristianismo, no sentido de conhecê-lo (biblicamente falando) e de nos relacionarmos intimamente com ele, mais acabamos fodendo com ele, no sentido de arruiná-lo juntamente com a sua reputação. Deveria nos parecer evidente que ler, escrever, estudar e tagarelar incessantemente sobre Deus e sobre a Bíblia, seja em livros ou blogs, no rádio ou na tv, na igreja ou no local de trabalho, não tem absolutamente qualquer relação de fidelidade com a herança de Jesus ou com os desafios deixados pela sua mensagem. Gente sem religião como meu amigo e seu herói, que não usurpa publicamente o nome do Filho do Homem, é capaz de levar adiante a sua boa nova e honrar a sua herança de forma muito mais aperfeiçoada do que o mais inatacável e articulado dos cristãos. Porque, muito evidentemente, o reino de Deus não consiste em palavra, mas em poder.

Aplica-se aqui, de forma irretocável e como sempre, a parábola do fariseu e do cobrador de impostos. Por um lado, os cristãos somos os fariseus que agradecem em voz alta, na luz de um palco que construímos para nós mesmos, a dádiva de não sermos pecadores como os irreligiosos; por outro, os irreligiosos que fazem avançar secretamente o reino são como o cobrador de impostos, que não ousam assumir a ribalta e não se consideram dignos de levantar a cabeça nem mesmo para proferir o nome do herói cuja herança poluímos. Fique muito claro, porque esse mesmo Jesus deixou-o muito claro, que não seremos nós a merecer o abraço de confidência do mestre.

O que fode com o cristianismo somos nós.


Paulo Brabo
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