domingo, 25 de abril de 2010

O trágico e o lúdico

Rir e chorar dependem do lado para que se olha. Ali na frente, poças lodocentas deslustram a alma. Aqui perto, o vôo irreverente dos pardais desenrugam os lábios para que se abra um largo sorriso. Basta ver a sorte inclemente dos miseráveis para perder o sono. Não é fácil conviver com a desigualdade social que rouba sonhos, tormenta, mata. Mas alegria explode no vértice do sofrimento; bastam o abraço despretensioso do neto, a alegria do casal que adotou, o zelo resiliente da mãe do filho com paralisia cerebral e o trabalho anônimo do voluntário.

Rir e chorar dependem do caminho que se escolheu na esquina deserta. Estradas largas levam ao calabouço. Atalhos despencam em abismos. Avenidas não passam de passarelas para o inferno. Trilhas inóspitas, virgens, são fascinantes. Quanta alegria na aventura de desbravar fronteiras. A felicidade mora alguns centímetros depois da linha do horizonte. Arriscar é tonificante. Fracassar, triunfar, instigar e suplantar-se transformam o tédio em disposição.

Rir e chorar dependem das expectativas que enlaçam a alma. Ilusões implausíveis exaurem, fatigam, esfolam. Promessas irreais, mentirosas, entorpecem como morfina. Ufanismos terminam em ressaca. Coragem de encarar a existência sem quimera, sem negação, sem fuga, produz um júbilo diferente.

Rir e chorar são duas faces no baralho da vida.

Rio e choro sem culpa, a vida é ao mesmo tempo trágica e lúdica.


Ricardo Gondim

sexta-feira, 23 de abril de 2010

A lucidez profética

O homem que está em pé prestes a abrir a boca é um pescador, o homem mais apaixonado e mais caloroso – mas também o mais desastrado, impulsivo e falastrão – do panteão dos discípulos. Os outros balançaram a cabeça em silêncio, mas este sujeito ousou tentar convencer Jesus a abrir mão das necessidades da cruz. Os outros fugiram à uma para as trevas e para o isolamento, mas este negou o nome diante de todos, na dura luz do fogareiro e das tochas – não apenas uma, mas três fabulares vezes, como um pêndulo, como um estouvado metrônomo, e no último momento foi fisgado pelo olhar do seu mestre, que viu de longe o que o amigo estava fazendo.

A negação de Jesus foi o momento definitivo de Pedro, o instante em que teve de enfrentar quem realmente era e quem seria para sempre dali em diante. Ninguém tem o privilégio de se definir mais de uma vez na vida, ninguém tem como recuperar-se da definitiva contemplação no espelho, por isso é natural que estejamos céticos quando é o claudicante pescador que levanta-se diante de todos e toma a palavra para discursar pela primeira vez na vida.

É um momento formidável, este em que um derrotado fala em nome de Deus; porém, como nada será como antes, esta não será a última vez. Pedro conhecera a cegueira das lágrimas, o peso insustentável do perdão e a chã perplexidade da separação, mas quando se levanta para falar suas velas inflam-se com um vento que não é seu.

Não era coisa exatamente desconhecida, no fio da tradição bíblica, a incursão de gente comum e sofrida abrindo a boca para apregoar os oráculos de Deus. Mas eram casos excepcionais. Não era qualquer um (e definitivamente não eram todos) que recebia o chamado de profeta e alguma medida da lucidez divina. Mesmo quando acontecia, um dos rigores dessa condição estava em que o dom de dizer as divinas palavras era concessão estritamente temporária. Falar em nome de Deus era performance delimitada pela profilaxia divina, que recolhia higienicamente o privilégio logo que a mensagem havia sido transmitida pela boca do arauto. Ninguém era profeta o tempo todo, e certamente não pelo tempo que quisesse.

A inoculação desse privilégio cirúrgico sobre os profetas é representada nos textos dos profetas pela expressão-chave “a palavra do Senhor veio sobre ['fulano', ou 'sobre mim'], dizendo”. Enquanto a palavra do Senhor residia sobre o profeta, ele falava com o aval divino. Assim Samuel (1 Samuel 15:10), Natã (2 Samuel 7:4), Gade (2 Samuel 24:11), Salomão (1 Reis 6:11), Elias (1 Reis 17:2), Semaías (2 Crônicas 11:2) Isaías (38:4), Jeremias (1:4), Ezequiel (1:3), Oséias (1:1), Jonas (1:1), Miquéias (1:1), Sofonias (1:1), Ageu (1:1) e Zacarias (1:1). Mas a palavra do Senhor dizia o que tinha para dizer e ia embora, deixando o profeta sem fôlego e sua audiência num vazio de perplexidade.

Na Bíblia inteira, a última pessoa a receber essa inoculação de sanidade divina foi João Batista: “veio a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto (Lucas 3:2)”. No Novo Testamento a palavra do Senhor não voltará a visitar pessoa alguma, nem mesmo os apóstolos, nem mesmo Jesus. A boa razão e a boa nova por trás dessa deserção está em que na ótica desconcertante do evangelho Jesus é, ele mesmo, a Palavra do Senhor espantosa e definitivamente encarnada. Depois que Jesus veio, a Palavra (o Verbo, no vocabulário de João) passou a habitar entre nós – e estamos, dois mil anos depois, apenas começando a compreender as implicações desse privilégio.

Agora Pedro põe-se de pé para falar e entende que, vertiginosamente, pode falar em nome de Deus (em nome de Jesus!) sem que “a palavra do Senhor venha sobre ele”. O velho pescador foi dobrado e reerguido pelo espírito do seu mestre, e está agora inteiramente embebido nele no vaso de comunhão de seus irmãos e irmãs.

O discurso que ele irá proferir tem duas partes e baseia-se em duas constatações, e esta é justamente a primeira: a compreensão de que os dias da concessão cirúrgica da lucidez divina terminaram, e chegou o momento em que Deus derramaria do seu espírito de forma pródiga, generosa e indiscriminada: “sobre toda carne”. Como antecipado por Joel, tinha sido inaugurada a era em que “os filhos e as filhas de vocês profetizarão, os jovens terão visões, os anciãos terão sonhos”. Viera o momento em que Deus derramaria sua lucidez sobre “seus servos e sobre suas servas” (sobre escravos e escravas, no texto em hebraico), e eles todos profetizariam – isto é, falariam sanidade de Deus.

Este, anuncia Pedro, é o terrível e maravilhoso momento da extinção dos profetas. João Batista tinha sido o maioral, mas o mais insignificante dos seguidores de Jesus, na formidável dimensão do reino de Deus, é maior do que João. O milagre deste Pentecoste está em que crianças, jovens, anciãos, homens e mulheres, escravos e escravas, pescadores e cobradores de impostos, aqueles que não conheciam qualquer voz e qualquer relevância, podem falar e serão entendidos. É momento de sinais terríveis no céu e na terra, porque a estrutura da sociedade e as fundações da espiritualidade estão sendo abaladas para sempre. Quem abraçar essa redentora palavra do Senhor será salvo.

A primeira porção do discurso de Pedro aponta para as diversas vozes que falam ao seu redor, cada uma falando do seu ponto de vista, com seu próprio timbre e sua própria entonação, mas reverberando uma mesma Palavra. A língua de fogo da lucidez divina concedera seu aval a cada uma. É um momento de desvairada celebração, Pedro está de fato dizendo, e ainda nem começamos a beber. A lucidez profética pertence agora a todos, não a um eleito ou outro; está sobre mim, mas está também sobre todos e cada um destes. A palavra do Senhor, sua assombrosa mensagem, reside dentro de nós, e daqui ninguém pode removê-la, mas todos podem tomá-la para si.

A herança que trazia de Jesus, Pedro entendia agora, não era apenas de dias empoeirados, ensino repartido, aforismos decorados e aventuras compartilhadas; não era apenas questão de sanidade contra loucura, misericórdia contra inclemência, vida contra a morte, lealdade contra traição. Não era só questão de um grande homem de Deus que vivera e tinha sido ceifado pela loucura de todos.

A formidável palavra do Senhor, que concedera sua lucidez aos profetas, se fizera carne e havia habitado entre eles. Tinham comido juntos, caminhando juntos, sorrido juntos, chorado juntos, morrido juntos e levantado juntos para um impensável futuro. Tinham sido derrotado juntos, e agora estavam vivos.

A palavra divina tinha se despido aos olhos dos homens, e agora qualquer voz podia proferi-la. Tinha virado gente, e não era agora que isso iria mudar.


Paulo Brabo

A verdadeira mensagem

Então, no exato centro do redemoinho, Pedro levanta-se e faz algo belo e terrível e inteiramente prenhe de consequências: começa a falar.

Não sabemos porque é necessário que apenas um tome a palavra e ensaie um discurso quando todos já estavam “falando das grandezas de Deus”, mas a postura de Pedro (“pondo-se de pé e levantando a voz”, diante de uma multidão atenta e com as defesas baixas) passou a representar o modelo canônico de como Cristo deve ser efetivamente apresentado. O próprio Jesus não havia dito que mediante a concessão do Espírito os discípulos aprenderiam o ofício de “serem testemunhas”? Pelo que vemos aqui, “ser testemunha” nada mais é do que produzir um discurso – ou, como viria a ser chamado, um sermão – habilmente adequado à situação do momento. Todos que há um minuto falavam sinfonicamente, até mesmo os onze, são obrigados a calar para que a Voz seja ouvida em apenas um.

Um só pregador, uma só congregação, um só público de gente de fora carecendo de salvação: o Primeiro Momento do Espírito é também o arquétipo da Primeira Igreja.

Será essa uma interpretação justa deste momento e do que ele representa? De certa forma não temos a esta altura, depois de milênios dessa mesma leitura, como saber.

É claro que mesmo Jesus já havia discursado, e muitas vezes. Mas Jesus, dito grosseiramente, falava com mais parábolas e com menos esperança de angariar seguidores. Deve ser evidente também que o sermão de Pedro é mais misericordiosamente breve e mais contundente do que qualquer sermão dos nossos dias, mas talvez o que recebemos no livro de Atos seja uma versão estilizada, devidamente condensada – não apenas do que Pedro disse, mas do que aconteceu naquela ocasião.

Como o texto que chegou até nós exibe um grau indefinido de estilização, talvez o discurso centralizado de Pedro seja uma necessidade meramente narrativa; talvez seu conteúdo tenha sido transmitido cooperativamente, através de todos e a cada um. Mais importante será entender que, de certo modo, não faz diferença.

Como em todo o texto bíblico, de Gênesis a Apocalipse, a verdadeira mensagem e propósito deste momento não é nos ensinar como as coisas devem ser feitas, mas fornecer-nos um vislumbre do que representa que tenham acontecido como aconteceram. O livro de Atos é registro de terrível transformação, não de confortável permanência. Não é um Manual mas um Testemunho – e o livro inteiro é permeado pela tensão entre os que recusam-se a aprender a diferença e os que abraçam o impensável e o imponderável.

Importante aqui é que aparentemente Jesus havia sido calado pela cruz, definitivamente vencido pela vergonha da sua derrota, e não restava qualquer vestígio de vida na sua mensagem. O maluco havia sido silenciado e seus seguidores haviam demonstrado que não representavam ameaça; isto é, não estavam à altura dele.

Então há de repente um maluco – não, um bando de malucos – falando alto sobre a excelência da mensagem dele e sobre a grandeza encapsulada na sua vida e na sua morte. O discurso de Pedro é importante não porque nos ensine que devemos discursar, mas porque é a primeira vez desde a morte de Jesus em que alguém se levanta e fala em nome de Jesus.

É algo tremendamente ousado de se fazer e, veja, logo Pedro.


Paulo Brabo

História de um fazendeiro

Certo fazendeiro tinha dois filhos. Um dia o filho mais novo pediu ao pai a sua parte da herança, e dias depois recebeu dele o equivalente a metade do seu patrimônio. De posse do dinheiro, o rapaz partiu para uma terra distante, onde investiu todo o seu capital, aplicando-o criteriosamente em investimentos de baixo risco e elevado retorno. Em pouco tempo havia duplicado o seu patrimônio e vivia confortavelmente.

O filho mais velho, que trabalhava no campo, ficou sabendo da prosperidade do irmão e também exigiu do pai a sua parte da herança; em seguida partiu para outra terra distante, onde também enriqueceu.

Houve então uma grande fome naquela terra. Tendo dissipado tudo, o fazendeiro começou a passar necessidade. Sendo de idade avançada e sem forças para trabalhar, pediu aos vizinhos que lhe deixassem encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada. Caindo em si, o homem disse:

– Quantos empregados dos meus filhos têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Vou ao encontro deles, e direi: “Meus filhos, estou sozinho e não tenho mais como me sustentar; tratem-me como um dos seus empregados”.

E saiu pelo caminho, decidido a encontrar em algum lugar um abraço. Em poucos dias estava morto, e não reviveu; estava perdido, e não foi achado.


Paulo Brabo

quinta-feira, 22 de abril de 2010

As demarcações do Amor

Ma che cosa è questo amore, che fa tutti delirar?
Aria de Berta, Il Barbiere di Siviglia

Dizer, como a carta de João, que Deus é amor, aparentemente não basta.

Comentando o verso vinte e sete do décimo-sexto capítulo do evangelho de João – “porque o próprio Pai vos ama, visto que me tendes amado e tendes crido que eu vim da parte de Deus” – Agostinho (354-430) toma o cuidado de qualificar o mecanismo (e portanto os limites) do amor de Deus por nós. Na opinião de Agostinho, muitas vezes repetida depois dele, o amor divino pelas pessoas deve ser compreendido exclusivamente em termos do amor de Deus, interno à trindade, pelo Filho e pelo Espírito Santo.

“Não que Deus não nos ame,” esclarece o teólogo; “porém Deus nos ama como seremos, não como somos”. Segundo Agostinho, Deus, por um lado “nos ama, para que nos tornemos”, por outro “nos odeia pelo que somos, exortando e capacitando-nos a não desejarmos ser para sempre dessa forma1”.

“Deus nos ama como seremos, não como somos”.

Agostinho não duvida de que Deus nos ame, porém segundo ele Deus é incapaz de amar em nós mais do que o reflexo antecipado do seu Filho – a quem seremos, se tudo der certo, semelhantes um dia. Deus não nos ama e não pode nos amar “como somos”, simplesmente porque não há nada em nós que Deus possa amar sem contradizer e macular a sua singularidade. É por essa razão, argumenta o teólogo, que só podem beneficiar-se verdadeiramente do amor de Deus os que se aproximam o suficiente da pessoa de Jesus.

Simone Weil, em rigoroso contraste, crê que as pessoas devem ser amadas como são, do contrário “não serão as pessoas que estaremos amando, e o nosso amor será irreal”. Esta parece ter sido também, nos evangelhos segundo minha leitura, a disposição e o ensino geral do próprio Jesus.

O amor de Deus pelo que é indigno, incompatível e desprezível efetivamente macula, como queria Agostinho, a singularidade divina? Ou vem, ao contrário, reforçá-la e comprová-la? Se o que Jesus amava numa mulher adúltera, num agiota ou num endemoninhado não passava de um reflexo potencial e antecipado de sua própria pessoa, conhecerá Deus um amor que não seja narcisista? Haverá algo no amor de Deus que não seja referência interna? Haverá no universo outro objeto digno de amor?

Para complicar as coisas, quanto mais uso essa palavra menos claro fica para mim do que estou falando. No fim das contas, o amor atribui valor ao objeto amado, ou apenas reconhece esse valor? O amor precisa do amor? O amor precisa do objeto amado ou pode prescindir galantemente dele? Pode o amor ser despido, em alguma parcela, de amor-próprio? Posso condenar Deus por não amar pessoa alguma além dele mesmo? Com que freqüência consigo mais do que isso?

Pensando bem, é mais fácil pensar que o amor de Deus seja dessa forma auto-referencial e circular; seria pedir demais que eu aprendesse a amar como ele, para fora e não para dentro.


Santo Agostinho, em "Sobre a Trindade"

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Mui Bíblica Missão Integral

Todos os seres e instituições existem com um propósito, construtivo ou destrutivo. Chamemos esse objetivo de missão. Muitas vezes, pessoas e instituições se afastam de seu objetivo original, ou o implementam por métodos inadequados ou ilegítimos. O pensador anglicano Michael Greene afirmou: “A Igreja ou é missionária, ou não é Igreja”.

Jesus Cristo, se esvaziou, encarnou em uma cultura e uma conjuntura, rompeu barreiras sociais, exortou, realizou sinais e prodígios. Ele é o exemplo para a Igreja: o Messias prometido, que transformou água em vinho e bebeu fel na cruz — da festa ao martírio. Foi ele quem disse: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21b).

A Palavra nos mostra o modelo da missão de Cristo, bem como da nossa: “Percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo” (Mt 4.23).

Para o comentarista da Bíblia de Genebra, “ensinar envolvia a comunicação da natureza e propósito do reino de Deus, como é visto no sermão do monte (caps. 4-7) e nas parábolas do reino (cap.13). Pregar era anunciar as boas novas de que o reino de Deus estava próximo, e que seus soberanos propósitos na história estavam sendo finalmente realizados. Curar, bem como ensinar e pregar, era sinal de que o reino já tinha vindo” (Mt 11.5).

Ele recrutou seus discípulos de diversos segmentos sociais e demonstrou que o reino de Deus não se identificava com nenhum dos partidos do seu tempo. O Messias era a Palavra viva, herdeira das palavras de Javé, libertando o seu povo da servidão do Egito, outorgando-lhe a Lei, falando pelos profetas.

Na sinagoga de Nazaré, assumiu o seu messiado e a realização da profecia de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para por em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor” (Lc 4.18-19).

Esse texto não deve ser “espiritualizado”, ou “materializado”, pois nos lembra o ideal de Deus para uma ética social superior, no Ano Sabático e no Ano do Jubileu, a realização plena escatológica (o “ainda não”) e as possibilidades de fazer avançar na história os valores do reino (o “já”).

A missão da Igreja deveria ultrapassar a tentação localista de uma mera seita judaica, e se expandir por todo o mundo. O cristianismo é intrinsecamente expansionista, porque o evangelho deve ser levado “até os confins da terra” (At 1.8). O Espírito Santo no Pentecostes foi derramamento de poder e outorga de dons, para tornar possível o cumprimento dessa missão, que não é opcional, mas imperativa: “Ide”.

Foi essa a obediência dos mártires, e a Igreja pagou um preço quando foi coerente, mas envergonhou o seu Senhor em tantos episódios pouco dignos, que, periodicamente, a chama para reforma e avivamento; para coerência e obediência.

Evangélicos, continuamos a crer que a prioridade da missão é a evangelização, entendida como “... a apresentação de Jesus Cristo no poder do Espírito Santo, de tal maneira que os homens possam conhecê-lo como Salvador e servi-lo como Senhor, na comunhão da Igreja e na vocação da vida comum”.

Na Idade Contemporânea, o malabarismo mental de teólogos liberais forjou um universalismo salvífico, que descolou o Jesus histórico do Cristo de Deus, e terminou vendo “a face escondida de Cristo atrás dos orixás...”.

No final do século 19 e início do século 20, nos Estados Unidos, a missão da Igreja foi dilacerada entre um “evangelho social” e um “evangelho individual”, unilaterais e parcializadores. A missão, tantas vezes atrelada a culturas, impérios e sistemas políticos ou econômicos, foi violentada e empobrecida.

Aos extremismos liberal e fundamentalista, o evangelicalismo — com toda a sua história de piedade engajada, de um Wilbeforce ou um Lord Shaftsbury, herdeiro da pré-reforma, da reforma, do puritanismo, do pietismo, do avivalismo e do movimento missionário, com seu conteúdo de uma teologia bíblica e histórica, foi capaz de, principalmente com o Congresso e o Pacto de Lausanne, devolver à Igreja a sua missão recomposta: “o Evangelho todo, para o homem todo e para todos os homens”.

É a missão integral, que, na resolução da Conferência de Lambeth, de 1988, dos bispos anglicanos, deve incluir e integrar as dimensões: a) proclamar as boas novas do reino; b) ensinar, batizar e instruir os convertidos; c) responder às necessidades humanas por serviço em amor; d) procurar transformar as estruturas iníquas da sociedade; e) defender a vida e a integridade da criação. Na América Latina destacamos o papel da Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL).

Somente um grande desconhecimento histórico ou uma grande má-fé podem ser responsáveis por se procurar identificar a Teologia da Missão da Igreja, evangélica, com a Teologia da Libertação, de premissas e história liberais. No meio de antigas e novas distorções, reafirmemos a mui bíblica missão integral.


Robinson Cavalcanti, na revista Ultimato.

terça-feira, 20 de abril de 2010

A Proclamação do Reino de Deus

Se, é verdade, que toda a humanidade, genericamente, está sob o Reino de Deus, em seu sentido cósmico, terráqueo e histórico, não é verdade que toda a humanidade esteja vinculada ao Reino de Deus, em sua relação com o Messias, os seus valores e a esperança escatológica. Nem todos os cidadãos dos Estados terrenos possuem a cidadania celeste. A humanidade continua expulsa do Paraíso. Dentre seus componentes, muitos, inclusive, chegam a negar a própria existência do Rei e do Reino ou afirmam uma lealdade a uma profusão de pretensos reis e pretensos reinos, equivocados quanto ao seu estado atual e o seu estado futuro: ateus, agnósticos, materialistas, politeístas, idólatras, magos, adivinhos, supersticiosos, sincréticos.

Por mais que possa hoje ser considerado “politicamente incorreto”, houve um Pecado Original, uma Queda, muitos estão “mortos em seus delitos e pecados”, perdidos, carentes de salvação. Consciente, ou inconsciente, essas multidões estão vinculadas espiritualmente ao Principado das Trevas, e seus anti-valores, e, após a morte habitarão em sua capital: o Inferno. Isso pode parecer antiquado e atentatório aos direitos humanos, mas está no Diário Oficial do Reino de Deus, veículo de comunicação cada vez mais desacreditado pela mente pós-moderna.

Para o mundo desenvolvido e secularizado, a salvação equivale à civilização e a civilidade. Ninguém, os Estados Unidos, por exemplo, pensa em tentar converter uma pessoa branca, de nível superior, proprietária de uma casa e um automóvel, eleitora do Partido Republicano, defensora da pena de morte e do direito de portar armas, e que não tem condutas consideradas anti-sociais. Essa pessoa, no imaginário popular, já está “salva”, e o que se deve fazer é enviar missionários para a África.

Li há alguns anos o comentário de uma revista evangélica, elogiando o fato de que, após muitos anos, alguém havia pregado sobre o Inferno em um congresso missionário, e que esse orador “somente poderia ser um brasileiro”. Ouvi, recentemente, de um líder evangélico uma palavra de censura: “não devemos falar do Inferno para as audiências atuais. Isso não comunica. Além do mais as pessoas já vivem aqui os seus infernos particulares”.

O Rei é um Rei perfeito, e um Rei amoroso. Uma espada flamejante vedou à humanidade a porta de retorno ao Paraíso. Hoje há uma porta aberta, e no lugar da espada flamejante, há uma cruz sangrenta. A porta é o próprio Príncipe da Paz. A rejeição ao Messias, não é algo que acontece apenas com os de fora. Não faz muito que, na Catedral Nacional, em Washington, um pregador afirmou: “Foi uma coisa horrorosa o fato do evangelista ter colocado na boca de Jesus essa frase infeliz: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida, e ninguém vem ao Pai senão mim”. Essa frase é arrogante, imperialista e politicamente incorreta”.

Equivocam-se os universalistas quando pretendem que todo o Povo seja considerado Povo de Deus, ou que todos caminham de volta ao Paraíso, a despeito de suas crenças ou descrenças. Equivocam-se quando negam a realidade tanto do Pecado Original, quanto dos pecados atuais. Equivocam-se quanto negam o papel único de Jesus de Nazaré na economia da salvação. Equivocam-se quando negam a necessidade de mudança de vida, de santidade, de transformação. E o nome desse equívoco chama-se heresia, falso ensino, falsa doutrina, e isso deve ser dito, porque não dizê-lo seria trair a verdade, trair ao Rei, e demonstrar falta de amor para com os próprios equivocados, que necessitam de ser confrontados com a verdade, necessitam de uma chance para a reconciliação com o Rei e a vinculação ao Reino.

O Rei amoroso está chamando a todos de volta. O Filho do Rei estava vivo e morreu, para que os que estão mortos possam reviver.

E quem serão os mensageiros, os porta-vozes, os embaixadores, da mensagem do Reino? O Diário Oficial do Reino nos diz que serão os que integram a nova e eterna Aliança, a Igreja do Príncipe da Paz. Ele poderia enviar legiões de anjos, ao som de trombetas, assessorados pelos marqueteiros celestiais. Seria um show de comunicação. Bem mais rápido, bem menos trabalhoso, e, talvez, mais eficiente. Mas o Rei não quis assim. Aos chamados que escutaram a sua voz, aos que nasceram de novo, Ele os devolveu como seus mensageiros no meio do mundo; Ele nos devolveu à História. E isso é uma ordem, não uma sugestão. Assim como o Pai o enviou, Ele nos envia esvaziados, encarnados, revestidos de poder, na diversidade dos nossos dons e vocações. Não fazê-lo, mais do que acomodação, é desobediência e inautenticidade. Há dois mil anos que isso acontece, e geralmente se paga um preço.

A primeira e central tarefa da Igreja é o anúncio, é a proclamação das Boas Novas do Reino de Deus. O anúncio não esgota o conteúdo da missão, mas sem ele não haverá gente para realizar as outras tarefas: a de batizar e integrar os convertidos a uma comunidade de fé; a de ensinar todo o conselho de Deus; a de despertar no coração dos fiéis respostas de misericórdia às necessidades humanas; a de curar os enfermos do corpo, da mente e da alma; a de libertar as pessoas do poder do Príncipe das Trevas; a de defender a vida e a integridade da criação; a de denunciar as estruturas iníquas da sociedade e os males das culturas.

Tudo isso nos foi confiado. Tudo isso integra o conteúdo da Missão Integral da Igreja, mas a missão começa com o evangelismo, quando se procura persuadir os pecadores ao arrependimento e à fé na graça suficiente evidenciada na cruz e no túmulo vazio. Por todos os meios, métodos e abordagens, por palavras e por ações, não podemos dizer diferente do apóstolo Paulo: “Nada vos tornei conhecido, senão a Cristo, e a esse crucificado”.

Missão Integral que deve se acompanhada de uma Espiritualidade Integral, que inclui a Adoração, a Reflexão e o Serviço, evitando-se os unilateralismos do misticismo, do academicismo e do ativismo.

A tarefa de proclamação do Reino vive uma de suas crises mais graves. Nega-se a autoridade das Sagradas Escrituras, a unicidade de Jesus Cristo como Senhor e Salvador e a unidade da Igreja como agência especial do Reino. A Grande Comissão é condenada.

Um documento contemporâneo de um dos ramos do Cristianismo definiu a Igreja como: “Um ente social, cultural, afetivo e litúrgico, onde não há lugar para doutrinas, nem normas de comportamento”. Esse mesmo documento também definiu a Bíblia como um livro da tradição religiosa judaica: “útil para a devoção privada e para o uso litúrgico público, mas a quem não se deve buscar base para definir doutrinas ou normas de comportamento”. Outro texto institucional afirma que: “os ensinos morais contidos na Bíblia foram apenas válidos para o tempo dos seus autores, e que não se aplica a situações atuais, especialmente no tocante à Sexualidade Humana”.

Devemos reconhecer, por um lado, que vivemos hoje – como sempre – em um mundo hostil ao Rei. O Islã está em alta, há um ressurgimento das grandes religiões tradicionais, como o Bramanismo e o Budismo, há um crescimento do fanatismo violento, há uma disseminação do esoterismo, de cultos exóticos, de seitas várias, do sincretismo. O fim do materialismo sistemático não abriu, necessariamente, os corações ao Evangelho, nem trouxe de volta às Igrejas, as multidões nominais. Presenciamos um materialismo prático, consumista, e uma espiritualidade vaga e sincrética. Como no Areópago de Atenas, há uma profusão de deuses e um Deus desconhecido. O Ocidente, ao nível das instituições estatais e de setores da Sociedade Civil, vem conhecendo uma escalada da ideologia Secularista, anti-religiosa e, muito mais, anticristã, a empurrar a fé para o recôndito da alma e o interior dos lares e dos templos, vedada a sua manifestação na esfera pública, condenada à irrelevância.

Mas, por outro lado, há uma hostilidade ao Rei dentre os que se pretendem integrar o seu povo. Um ministro de uma Igreja cristã se pretendeu ser, ao mesmo tempo, cristão e islâmico, e isso poderia ser possível em sua cabeça, que nega todos os ensinos cristãos que são rejeitados pelos discípulos de Maomé. Outro ministro de uma Igreja cristã, em um culto dito macro-ecumênico, pediu públicas desculpas aos hinduístas, porque no passado os missionários tentaram convertê-los. Um líder mundial cristão afirmou quer as pretensões do Cristianismo são ofensivas aos seguidores do Islã. A agenda do setor dito Liberal pós-moderno da Igreja, inclui o universalismo, a defesa da agenda homossexual (GLSTB) e a promoção do macro-ecumenismo, multiculturalista, de braços dados, no caso brasileiro, com os “pais-de-santo”, quando essa não foi a atitude dos apóstolos com os sacerdotes de Diana. E a resposta a esse ceticismo e a esse relativismo não deve ser o fanatismo.

Os obstáculos ao anúncio do Reino de Deus não estão apenas fora, no que chamamos de “mundo”, mas dentro da própria Igreja, que, em muitos lugares está implodindo em suas negações. Testemunhamos, nessas conjunturas, o suicídio de uma religião.

O que fazia a Igreja Primitiva “cair na graça de todo o povo”? A sua unidade, o seu amor, a sua verdade, a sua mensagem, a coragem para assumir riscos. Hoje, podemos estar caindo na “desgraça de todo o povo”, por nossos próprios erros, pedras de tropeço na comunicação do Reino. Isso inclui a desonestidade da exploração das pessoas simples e crédulas, os escândalos financeiros, a ostentação, o mau exemplo ao ocupar funções no Estado.

Quando nos detemos na Oração Sacerdotal de Jesus, percebemos a sua ênfase na Unidade. Como Ele e o Pai eram um, a Igreja deveria ser uma com eles, e uma entre si, “para que o mundo creia”. Repito: “para que o mundo creia”. Jesus Cristo criou uma só Igreja, e pretendeu, no Final, se encontrar com uma noiva, e não com um harém. Chegamos depois de mil e seiscentos anos, à Reforma Protestante, com apenas quatro ramos de Cristianismo em todo o mundo: os Bizantinos, os Pré-Calcedônios (como os Coptas, os Sirianos e os Armênios), os Pré-Efesianos (Nestorianos) e os Romanos. Terminamos a Reforma com oito, com o acréscimo de Luteranos, Anglicanos, Calvinistas e Anabatistas. Chegamos ao século XVIII com algumas dúzias, e, daí em diante, deu a louca na zorra total. Estudiosos falam de 18.000 ou 38.000 denominações, sub-denominações, jurisdições e ministérios dentro do guarda-chuva da Cristandade, fora as seitas. E, ainda, queremos que o mundo creia?

A debilidade da Reforma em tratar da eclesiologia, levando em conta os dois mil anos da História da Igreja, levando em conta o consenso dos fiéis, deu no que deu: o denominacionalismo, como fenômeno descontrolado. Denominação não é um conceito teológico, mas sociológico, jurídico e administrativo. E essa idéia de se justificar um caos institucional, fruto do espírito capitalista da “livre empresa” e não dos ensinos bíblicos, ou da vontade de Deus, com o apelo para uma “unidade espiritual”, uma tal de “igreja invisível” (que deve ser formada por fantasmas), sejamos honestos, é um malabarismo mental, para fugir da pecaminosa realidade e da dor de consciência, e seu fundo é o platonismo. Nada pode justificar o denominacionalismo. Afirmar que “Deus me mandou criar uma denominação” é uma blasfêmia! O nome desse pecado é Cisma: o pecado contra a unidade, em nome de projetos pessoais ou de ridículas doutrinas secundárias como a temperatura da água do batismo, ou se esse deve ser ministrado por chuveiro, mangueira ou spray...

Mas, na Oração Sacerdotal, há outra preocupação: o envio do Espírito da Verdade, que nos conduziria a toda a verdade. Somos advertidos pelos apóstolos contra os falsos profetas e os falsos ensinos. E o pecado contra a Verdade chama-se Heresia. E um mal nunca justifica outro: a unidade com heresia é uma falsa unidade, porque a heresia é um cisma material, a ruptura da unidade essencial; a Verdade com uma Igreja dividida, o cisma formal, é uma negação da Verdade. E essa é a tragédia dos nossos tempos. E ainda queremos que o mundo creia? Onde está o Reino? Onde está a vontade do Rei. Que tipo de súditos somos nós que desobedecemos, escancaradamente, ao Rei? Que exemplo e que imagem estamos passando para os que ainda estão fora do Reino?

Uma questão mais central é: crêem ainda os cristãos na mensagem da cruz? Somos realmente convertidos? Fomos realmente alcançados? Porque, se o somos e o fomos, queremos, pelo poder do Espírito Santo, obedecer à Grande Comissão, ir até os confins geográficos, culturais e sócio-econômicos da terra. Essa dependência do Espírito Santo, porém, é reduzida pela dependência de métodos e macetes (geralmente importados), em suas ondas uniformizantes periódicas.

Outra questão central: a que Reino nós estamos anunciando e convocando? O Reino egoísta dos privilegiados “filhinhos do papai celestial”, sempre saudáveis, sempre prósperos e sempre nos cargos de mando, qual os antigos judeus que se vangloriavam de serem “filhos de Abraão”? Ou estamos anunciando a necessidade de arrependimento (que não é nem sentimento de culpa, nem remorso), de renúncia ao eu, de seguimento das pegadas do Mestre, compartilhando suas dores e sua cruz, descobrindo e exercitando dons no Corpo e vocações no mundo a quem somos enviados para amar e servir?

Além da revalorização da Palavra e da autenticidade da experiência, além da conversão e da obediência, necessitamos redescobrir e revalorizar a História da Igreja, toda ela. O que podemos apreender, pela imitação dos acertos e pela não imitação com os erros, com as gerações que nos precederam, tanto no mundo, quanto no próprio Brasil?

Em um século e meio, a geração dos Apóstolos, a geração seguinte dos Pais Apostólicos, e a geração seguinte dos primeiros Pais da Igreja, haviam estabelecido, segundo o princípio “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós”, alguns pilares que sustentaram a Igreja e a sua missão por muitos séculos: o estabelecimento do Cânon do Novo Testamento e o fechamento do Cânon Bíblico; a afirmação dos Sacramentos do Batismo e da Ceia do Senhor; a definição das doutrinas centrais contidas no Credo Apostólico e no Credo Niceno, e a forma Episcopal de governo.

Ao longo dos séculos, sem negar esses pilares centrais, as Igrejas Pré-Reformadas do Oriente e do Ocidente acrescentaram, nas palavras dos Reformadores, “erros, desvios e superstições, sem, contudo, deixarem de ser ramos autênticos da Igreja de Cristo”. A Reforma (que vai se dividir em reformas) veio para corrigir esses “erros, desvios e superstições”, pretendendo um retorno à herança apostólica, mas acabou cometendo seus próprios equívocos, jogando o bebê junto com a bacia e a placenta, chegando hoje aonde eles nunca pretenderam chegar: às heresias, aos cismas e a novos “erros, desvios e superstições”, com alguns dos que se pretendem ligados à Reforma promovendo um retorno ao mundo pré-reformado, com sua magia, sua simonia e suas indulgências.

Em saco e cinza, em arrependimento pelo pecado de proclamarmos pessoas e organizações, de proclamarmos usos e costumes e não a Graça, afirmando que as utopias somente têm valor quando são antecipações possíveis que apontam para a Parousia, devolvamos o tema do Reino de Deus ao centro das preocupações e ensinos da Igreja, e proclamemos a todos que o Reino é chegado! E que um dia o Rei voltará para consumá-lo!


Robinson Cavalcanti

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O tempo ainda nos dá um tempo

2009 está chegando ao fim!

Mais um ano se vai, com o fiasco da Conferência de Copenhagen sobre o Clima. Em breve, os ursos polares precisarão usar protetor solar. O mundo continua a ser dominado por donos, com alguns mais donos do que os outros. A História, sempre em movimento, parece continuar fechada em termos de utopias, de alternativas para a presente (des)ordem de coisas.

Enquanto isso, a educação, a saúde e a segurança pública do nosso País é uma ficção de mau gosto. Milhões de compatriotas vivendo na miséria e na dependência do paternalismo governamental, quem tem uns trocados para comer é promovido a uma hipotética “classe média”, a corrupção – impune – atinge todos os ramos e níveis do Poder; a imprensa continuar a manipular, o mito do “super-líder”, turbinado por um filme meloso continuando pairando acima da vida concreta, com a oposição sem alternativas e todos sem um projeto nacional. O crack vai dizimando vidas, destruindo famílias, ameaçando o tecido nacional, nos fazendo ter saudades dos tempos que tínhamos apenas craques...

2009 deixa, para 2010, muitas pendências a resolver. Serão resolvidas?

E nossas vidas? Como peregrinos, vamos nos distanciando do nascimento e nos aproximando da morte, com a esperança e a possibilidade de, a cada ano, renascermos.

Mais do que uma convenção, uma mudança no calendário, o tempo é concreto em sua entropia: todos ficamos mais velhos, embora nem todos fiquemos mais maduros. Queremos avaliar, dar um balanço existencial, tomar decisões, mudar, crescer, amadurecer? Nem sempre. Pois isso sempre implica em um preço que poderemos não querer pagar.

“...deixando para trás as coisas que para trás ficam...”, nos aconselha o apóstolo das gentes: “...eis que tudo se faz novo...”, é a mensagem de esperança em Cristo Jesus, pelo poder do Espírito Santo, que é espírito de poder.

Fim de Ano é tempo de avaliação, é tempo de ação de graças, é tempo de estabelecer novas metas para o ano entrante.

Quão triste e enfadonha é a sucessão de dias sem significado!

Ninguém está aqui nessa terra e nesse tempo por um acaso. Estamos todos sob a Providência Divina e sob a Graça Comum, com um objetivo existencial proposto pelo céu e nem sempre aceito e vivenciado por nós. Para o Povo de Deus, sob o Pacto da Graça, há mais do que propósitos, há uma missão, com nossos dons e vocações.

2010 já é quase uma realidade, e será uma nova oportunidade que nos é dada por Deus. Seria tão bom não desperdiçá-la!

No dia 31, à meia noite, como faço há quase meio século, espero estar, como milhões de brasileiros de norte a sul, no santuário de uma das nossas Paróquias, cultuando ao Senhor, rededicando a vida. Posso convidá-lo(a) a fazer o mesmo, em sua cidade e em seu bairro?

Como pessoa, como bispo, como parte da família humana, de uma família biológica e da família da fé, tenho muito que agradecer por 2009, e a esperar por 2010.

Desejo a todos os meus amados amigos e irmãos na fé, da nossa Diocese e de outras confissões de fé, de todo o Brasil, um abençoado novo tempo em 2010. Que o Senhor do Universo, Senhor da Igreja e Senhor das nossas vidas os abençoe ricamente!


Robinson Cavalcanti

Quero crer no amor

Mais uma daquelas que espero que sejam proféticas.



A Deus Somente A Glória,
Ricardo A. da Silva

domingo, 18 de abril de 2010

Provas vivas

Livros contendo evidências da ressurreição têm relevância por serem livros úteis; porém, não passam de livros. As verdadeiras 'provas' da ressurreição de Jesus são as vidas ressurretas, transformadas pelo Cristo vivo no mais profundo do ser, o coração.


James Houston, em A fome da alma.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Trasposição, Lewis again

Pela tradição da minha igreja, o dia de hoje é consagrado à comemoração da descida do Espírito Santo sobre os primeiros cristãos, logo após a ascensão. Pretendo aqui examinar um dos fenômenos que acompanharam ou sucederam tal descida: trata-se do fenômeno que a nossa versão [da Bíblia] chama de “falar em línguas” e os eruditos, de glossolalia. Não que esse seja o aspecto mais importante do Pentecoste para mim. Eu o escolhi por dois motivos básicos. Em primeiro lugar, seria absurdo que eu discorresse sobre a natureza do Espírito Santo ou sobre suas formas de atuação: isso seria querer assumir as funções de mestre, quando na verdade mal iniciei meu aprendizado. Em segundo, a glossolalia sempre significou uma pedra de tropeço. Para ser franco, é um fenômeno desconcertante para mim. O próprio apóstolo Paulo parece ter ficado desconcertado com ele em 1 Coríntios, esforçando-se por desviar a atenção e a expectativa da igreja para os dons evidentemente mais edificantes. Mas ele não passa disso. Acrescenta quase parenteticamente que ele mesmo, mais do que ninguém, falou em línguas e não questiona a fonte espiritual ou sobrenatural do fenômeno.

O que tenho dificuldade de entender é a seguinte: por um lado a glossolalia continua sendo, até hoje, um dos “gêneros de experiência religiosa” mais cobiçado. De tempos em tempos, ouvimos falar de alguma reunião de avivamento em que um ou outro desatou a falar coisas ininteligíveis. Isso não parece edificante e, na opinião geral dos não-cristãos, seria considerado uma espécie de histeria, a manifestação de um estado de nervos fora do controle. Boa parte dos cristãos explicaria a maioria de casos assim, da mesma forma, e devo reconhecer ser muito difícil acreditar que o seja o Espírito Santo que estivesse agindo em todos esses casos. Usualmente supomos, mesmo sem ter muita certeza, que se trata de um problema nervoso. Esse é uma dos nós *górgios do dilema. Por outro lado, como cristãos não podemos simplesmente engavetar a história do Pentecoste ou negar que, de alguma forma, naquela ocasião, o falar em línguas tivesse sido um milagre de fato. Porque as pessoas não proferiram palavras sem nexo, mas, sim, línguas por embora fossem desconhecidas a elas, entretanto, eram, sim, conhecidas dos demais ali presentes. E todo e qualquer o acontecimento envolvido nesse fato está inserido no próprio contexto da história do nascimento da igreja. Trata-se precisamente do acontecimento pelo qual, de acordo com as palavras do Senhor ressuscitado — em das últimas que proferiu antes de sua ascensão — a igreja deveria estar aguardando. Logo, segundo nos parece, seremos forçados a concluir que precisamente o mesmo fenômeno não apenas natural, mas às vezes até patológico, é em outras circunstâncias (uma ou outra vez) o veículo do Espírito Santo. E isso parece, a princípio, surpreendente e vulnerável demais a refutações. O cético não perderá a oportunidade de falar da “navalha de Occam”, acusando-nos de emendar hipóteses a outras hipóteses. Se, na maior parte dos casos, a histeria é responsável pela glossolalia, não será bem provável (perguntará ele) que a mesma explicação seja aplicável a todos os demais casos?

É para essa dificuldade que eu gostaria de ter o prazer de trazer um pouco de esclarecimento, se puder. E vou começar, dizendo que ela pertence a uma categoria especial de problema. Nessa categoria, o exemplo mais próximo em nível de dificuldade pode ser considerado o uso linguagem e imagens eróticas pelos autores cristãos místicos da Idade Média. Encontramos neles toda uma gama de manifestações desse tipo — e provavelmente, portanto, de emoções — que, em outro contexto, seria bastante conhecidos, que nesse outro contexto, assumem o significado mais natural do mundo. Está claro, contudo, que nos escritos místicos esses elementos têm outra motivação. Mais uma vez o cético perguntará por que não aceitamos para o centésimo caso a motivação que nos prontificamos a aceitar para os noventa e nove. Para ele, a hipótese de que o misticismo é um fenômeno erótico parecerá muito mais provável do que qualquer outra.

Apresentado em linhas gerais, o nosso problema é o da evidente relação entre o que é notadamente natural e o que se supõe espiritual; o ressurgimento, naquilo que se apresenta como nossa vida sobrenatural, dos mesmos velhos elementos que compõem a nossa vida natural e (segundo parece) a de nenhum outro. Se de fato fomos favorecidos com uma revelação sobrenatural, não será muito estranho que o Apocalipse possa guarnecer o céu tão somente com elementos recolhidos da experiência terrena (coroas, tronos, música)? Também que a devoção religiosa não encontre outra linguagem senão a dos amantes e que o rito com que o cristão celebra a união mística não passe do velho ato familiar de comer e beber? E você pode acrescentar que o mesmo problema apresenta-se num plano inferior, não apenas entre o espiritual e o natural, mas entre os planos mais elevados e os mais baixos da vida natural. Por isso, os cínicos são muito plausíveis ao contestar nossa civilizada distinção entre amor e sensualidade, observando que, afinal de contas, ambos culminam no mesmo ato físico. Também contestam a diferença entre justiça e vingança, baseando-se no fato de que, para o criminoso, o resultado pode ser o mesmo. E admitimos que, à primeira vista, os cínicos e os céticos têm razão em todos esses casos. Os mesmos atos surgem de fato na justiça e na vingança; a consumação do amor conjugal é, fisiologicamente, igual à do mero desejo biológico; a linguagem e as imagens religiosas e, provavelmente, o próprio sentimento religioso, nada contêm que não tenha sido tomado por empréstimo da natureza.

Bem, parece-me que a única maneira de refutar a crítica é demonstrar que os mesmos argumentos, baseados na primeira impressão, seriam igualmente plausíveis em alguns casos nos quais todos sabem (não pela fé ou pela lógica, mas empiricamente) serem esses argumentos infundados. Será que temos algum exemplo de dois planos — um superior e outro inferior — em que o superior faça parte da experiência pessoal de quase todas as pessoas? Creio que sim.

Examinemos a seguinte transcrição do Diário de Pepys:

Fui com minha esposa à casa de espetáculos “King’s House”, assistir O Mártir Virgem (“The Virgin Martyr”) e amei [ Mas o que me deliciou, sobretudo foi a música de sopro, quando o anjo desce a terra, tão doce que me senti arrebatado. Aliás, em suma, ela absorveu minha alma a ponto de me dar náuseas mesmo, como no tempo em que me apaixonei por minha mulher [e me faz decidir estudar música de sopro e pedir à minha mulher que também o faça. (27 de fevereiro de 1668.)

Há aqui vários pontos que merecem atenção. Primeiro que a sensação que acompanhou o prazer estético era a mesma que acompanhou as duas outras experiências: a de estar apaixonado e a de atravessar, digamos, o canal da Mancha num temporal. Segundo, que, dessas duas experiências, uma pelo menos é a própria antítese do prazer. Ninguém gosta de sentir náuseas. Terceiro que Pepys desejava ardentemente ter de novo a experiência cuja sensação resultante era exatamente idêntica aos desagradáveis efeitos da náusea. E esse foi o motivo de resolver dedicar-se ao estudo da musica de sopro

É possível que nem todos tenhamos vivenciado em sua totalidade a experiência de Pepys, mas todos já experimentamos algo parecido. Eu mesmo já percebi que, se durante um momento de intenso prazer estético alguém busca captar, pela introspecção, aquilo que realmente esta sentindo, não conseguira deitar mão em nada que não seja puramente físico. No caso é uma espécie de contração ou espasmo do diafragma Talvez “náuseas mesmo” tivesse esse significado para Pepys Mas o que importa e o seguinte creio que esse espasmo e precisamente o mesmo que no meu caso, acompanha uma grande e súbita angustia. A introspecção não encontra nenhuma diferença entre minha reação neurológica a uma noticia muito ruim e minha reação neurológica a abertura da Flauta Mágica. Se eu tivesse de julgar simplesmente pelas sensações, poderia chegar à conclusão absurda de que prazer e angustia sejam a mesma coisa,* que aquilo que mais temo e também o que mais desejo. A introspecção não encontra nenhuma diferença entre os dois. E creio que a maioria de vocês, se tiver o habito de notar coisas desse tipo dirá mais ou menos a mesma coisa.

Vamos dar mais um passo. Essas sensações — a “náusea” de Pepys e o meu espasmo no diafragma — não são meros acompanhamentos insignificantes de experiências muito diversas. Podemos estar certos de que Pepys detestava tal sensação, sempre que acompanhasse uma enfermidade real, e sabemos, por suas próprias palavras, que gostava dela quando produzida pela música de sopro, pois tomou providências para garantir, dentro do possível, que a teria novamente. Eu também amo esse espasmo interno numa situação, chamando-o de prazer, e odeio-o em outra, chamando-o de sofrimento. Essa sensação não é um mero sinal de alegria e angústia: passa a ser o que significa. Quando a alegria transborda, então, pelo sistema nervoso, esse transbordamento é a sua consumação; quando a angústia transborda, esse sintoma físico é o horror concretizado. Aquilo, que faz uma gota do cálice doce ser a mais doce de todas é exatamente o mesmo que faz outra ser a mais amarga de todo o cálice amargo.

E aqui, creio eu, encontramos o que estamos procurando. Entendo que a nossa vida emocional esteja “acima” das nossas sensações — claro que não sendo moralmente superior, mas, sim, mais rica, mais variada, mais sutil. E quase todos conhecemos esse plano superior. E creio que, se alguém observar cuidadosamente a relação entre as suas emoções e as suas sensações, descobrirá que: 1) os nervos reagem, em certo sentido, de modo adequado e preciso às emoções; 2) as possibilidades de variação dos sentidos são muito menores que as das emoções, seus recursos, muito mais limitados e 3) os sentidos compensam essa deficiência servindo-se da mesma sensação para manifestar mais de uma emoção — até, como vimos, para manifestar emoções opostas.

Incorremos em erro ao concluir que, se existe uma correspondência entre dois sistemas, essa correspondência deva ser biunívoca — que A de um sistema faz-se representar por a no outro e assim por diante. Pois acontece que a correspondência entre a emoção e a sensação não segue esse padrão. E nunca pode haver tal correspondência quando um sistema é de fato mais rico que o outro. Para que o sistema mais rico possa-se fazer representar no mais pobre, é necessário atribuir mais de um significado a cada elemento deste. A transposição do mais rico para o mais pobre deve, por assim dizer, ser algébrica, não aritmética. Se você quiser traduzir de uma língua que dispõe de um vocabulário extenso para uma língua de vocabulário reduzido, precisa ter liberdade de usar várias palavras em mais de um sentido. Se tiver de representar graficamente uma língua que tenha vinte e dois sons vocálicos utilizando um alfabeto de apenas cinco caracteres vocálicos, precisará atribuir mais de um valor a cada um deles. Se tiver de transpor para o piano uma peça originalmente composta para orquestra, as notas que numa passagem representam as flautas representarão, em outra, os violinos.

Como demonstram os exemplos, todos conhecemos muito bem essa espécie de transposição ou adaptação de um plano mais rico para um mais pobre. O mais conhecido de todos é a arte de desenhar. Nesse caso, o problema é representar um mundo tridimensional numa folha de papel plana. A solução está na perspectiva, e perspectiva significa precisarmos atribuir mais de um valor a uma forma bidimensional. Assim, ao desenhar um cubo, usamos um ângulo agudo para representar o que, na realidade, é um ângulo reto. Mas, em outro lugar, o ângulo agudo pode representar no papel o que era já um ângulo agudo no mundo real: por exemplo, a ponta do espigão que remata as vertentes de um telhado. A forma que você desenha para dar a ilusão de uma estrada reta que se afasta do observador é a mesma que utiliza para desenhar a ponta de um cone. O que ocorre com as linhas também acontece com as sombras. A luz mais brilhante do desenho é, na realidade, apenas a brancura do papel; e esta deve servir para representar o sol, um lago iluminado pela luz do poente, a neve ou a carne humana.

Faço agora duas observações a propósito desses casos de transposição:

1) Em cada um deles verifica-se que o que se passa no plano inferior só pode ser compreendido quando conhecemos o plano superior. O exemplo em que esse conhecimento mais costuma falhar é o da música. A versão para piano significa uma coisa para o músico que conhece a composição original para orquestra e outra para quem simplesmente a ouve na forma de peça tocada ao piano. Mas o segundo estaria em desvantagem ainda maior se não conhecesse outro instrumento além do piano e até duvidasse da existência de outros instrumentos. Mais ainda: só compreendemos as pinturas porque conhecemos e habitamos um mundo tridimensional. Se conseguísse-los imaginar uma criatura que distinguisse apenas duas dimensões e que, mesmo assim, ainda pudesse perceber as linhas enquanto as rastreasse no papel, logo veríamos que lhe seria impossível entender. A princípio, poderia estar pronta a aceitar, como sendo de fonte segura, a nossa asseveração de haver um mundo tridimensional. Mas quando apontássemos para as linhas traçadas no papel e tentássemos explicar: “isto é uma estrada”, digamos, não replicaria ela que a forma que lhe pedimos que aceitasse como revelação do nosso misterioso mundo era precisamente a mesma que, em outro lugar, não passava de um triângulo? E em breve, imagino, essa criatura diria: “Você continua falando desse outro mundo e das suas incríveis formas chamadas sólidas. Mas não é bem provável que todas essas formas que me apresenta como imagens ou reflexos dos sólidos não passem, afinal, das velhas formas bidimensionais do mundo que sempre conheci? Não se torna evidente que esse outro mundo de que você se gaba, longe de ser o arquétipo, é antes um sonho totalmente formado por elementos deste mundo aqui?”.

2) É importante notar que a palavra simbolismo nem sempre é suficiente para abranger a relação entre o plano superior e a sua transposição para o inferior. Em alguns casos, aplica-se perfeitamente, em outros, não. Assim, a relação entre a fala e a escrita é simbólica. Os caracteres escritos existem apenas para os olhos, as palavras faladas, apenas para os ouvidos. A desconexão entre eles é absoluta. Não se parecem um com o outro, e um não pode dar origem ao outro. O primeiro é um simples sinal do segundo e tem esse significado por convenção. Mas a relação entre um desenho e o mundo visível não se reduz a isso. Os próprios desenhos fazem parte do mundo visível e só o representam por serem parte dele. A visibilidade de um tem a mesma origem que a do outro. Os sóis e as luzes parecem brilhar nos desenhos só porque os verdadeiros sóis ou as verdadeiras luzes brilham sobre eles: ou seja, parecem brilhar muito porque na realidade brilham um pouco ao refletir os seus arquétipos. Portanto, a luz do sol retratada em um quadro não se relaciona com a verdadeira luz da mesma maneira que as palavras escritas se relacionam com as faladas. É um sinal, sim, mas também mais que um sinal; e só é um sinal porque é também mais que um sinal, porque, de certa forma, a coisa que significa está presente nele. Se eu tivesse de dar um nome a esse tipo de relação, não a chamaria simbólica, mas sacramental. Mas na argumentação inicial — a da emoção e da sensação —, a relação é ainda mais íntima que a de um mero simbolismo. Porque nesse caso, como vimos a sensação não se limita a acompanhar ou meramente a significar emoções diversas e opostas: torna-se parte delas. A emoção desce fisicamente, por assim dizer, à sensação e a digere, transforma, transubstancia, de forma que a excitação que percorre os nervos é deleite ou é tormento.

Não afirmo que aquilo a que chamo transposição seja o único modo pelo qual um plano inferior possa corresponder a outro superior, mas afirmo ser muito difícil imaginar outro. Não é, por conseqüência, improvável que a transposição ocorra sempre que um plano mais alto reproduza-se num mais baixo. Assim, para divagar um pouco, direi que me parece bem possível que a verdadeira relação entre a mente e o corpo seja de transposição. Sabemos que, de qualquer maneira nesta vida, o pensamento relaciona-se intimamente com o cérebro. Em minha opinião, a teoria de que o pensamento é, portanto, um mero movimento do cérebro é inteiramente absurda; pois, se o fosse, essa mesma teoria seria mero movimento, uma atividade entre átomos que poderia ter velocidade e direção, mas que não poderia ser considerada “verdadeira” ou “falsa”. Somos, pois, levados a pensar em uma espécie de correspondência. Mas, se pressupomos uma correspondência biunívoca, significa que teremos de atribuir ao cérebro uma complexidade e variedade quase inacreditáveis de atividades. No entanto, julgo que esse tipo de relação biunívoca seja provavelmente desnecessário. Todos os nossos exemplos mostram que o cérebro pode responder — corresponder, de certo modo, de forma adequada e precisa — às variações aparentemente infinitas do consciente, sem fornecer uma única modificação física para cada modificação do consciente.

Mas isso é divagação. Voltemos à nossa questão original sobre espírito e natureza, Deus e homem. Nosso problema era que tudo o que pretende ser a nossa vida espiritual evoca os elementos da nossa vida natural e, o que é pior: à primeira vista, tudo nos leva a crer que não há nenhum outro elemento. Vemos agora que, se o plano espiritual é mais rico que o natural (e ninguém que creia na sua existência duvidará disso), nada há de estranho nesse fato. E a conclusão do cético de que, na realidade, o que chamamos espiritual deriva do natural, que é a miragem, projeção ou prolongamento imaginário do natural, também não é estranha; porque, como vimos, esse é o erro em que um observador que só conhecesse o plano inferior forçosamente incorreria, sempre que fizesse uma transposição. O indivíduo sensual nunca poderá distinguir, em sua análise, o amor da lascívia; o habitante de uma planície nada encontrará num quadro senão formas planas; a fisiologia nada verá no pensamento senão contrações da massa cinzenta. De nada servirá argumentar com o crítico que aborda a transposição a partir de um plano inferior. Com as provas que possui, sua conclusão é a única possível.

Tudo se transforma quando examinamos a transposição de cima, como fazemos no caso da emoção e da sensação ou do mundo tridimensional e dos desenhos, e como faz o homem espiritual no caso que estamos analisando. Os que já falaram em línguas, como Paulo, sabem como o santo fenômeno difere do fenômeno histérico — lembrando, entretanto, que o fenômeno é, em certo sentido, precisamente o mesmo, como era a mesma a sensação que invadiu Pepys no amor, no prazer musical e na náusea. As coisas espirituais discernem-se espiritualmente. O homem espiritual julga todas as coisas, mas de nenhuma é julgado.

Mas quem ousa considerar-se um homem espiritual? Em sentido estrito, nenhum de nós. Contudo, sabemos que, de algum modo, vislumbramos de cima, ou de dentro, pelo menos algumas dessas transposições que dão corpo à vida cristã neste mundo. Por mais que nos consideremos indignos ou audaciosos, podemos afirmar que conhecemos um pouco desse sistema superior que está sendo transposto. De certo modo, a afirmação que fazemos não é muito espantosa. Afirmamos apenas saber que nossa visível devoção, qualquer que tenha sido, não era puramente erótica, e que nosso visível desejo do céu, qualquer que tenha sido, não era mero desejo de longevidade, riqueza ou esplendor social. E possível que nunca tenhamos atingido aquilo que Paulo descreve como vida espiritual. Mas sabemos, pelo menos, ainda que de maneira obscura e confusa, que procuramos atribuir um novo significado aos atos naturais, às imagens e à linguagem; desejamos, pelo menos, um arrependimento que não é mera prudência e um amor que não é egoísmo. Na pior das hipóteses, o que conhecemos do plano espiritual é suficiente para nos tornar conscientes de que estamos longe dele; como se o quadro tivesse conhecimento do mundo tridimensional o suficiente para ter consciência de seu próprio achatamento.

Não é só por humildade (a qual, evidentemente, não se exclui) que precisamos sublinhar a imperfeição do nosso conhecimento. Suponho que, se não for por milagre de Deus, a experiência espiritual não se submete à introspecção. Se nem as nossas emoções se submetem a ela (já que a própria tentativa de descobrir o que estamos sentindo neste momento não revela mais que uma sensação física), muito menos a operação do Espírito Santo. A tentativa de descobrir a nossa condição espiritual por meio da análise introspectiva é, para mim, uma coisa horrível que jamais nos pode revelar os mistérios do Espírito de Deus ou do nosso espírito — quando muito, revela a transposição dele no intelecto, na emoção e na imaginação — e que, na pior das hipóteses, pode ser o caminho mais curto para a presunção ou o desespero.

Com isso dou o caso por encerrado, como dizem os advogados.

Mas devo acrescentar apenas quatro pontos:

1) Espero ter esclarecido que o conceito de transposição, como o apresento, é diferente do conceito empregado muitas vezes para o mesmo fim — refiro-me ao conceito de desenvolvimento. Os que defendem esse conceito explicam a relação entre o que se diz espiritual e o que com certeza é natural, afirmando que um transformou-se gradualmente no outro. Creio que esse ponto de vista explique alguns fatos, mas acredito haver abusos. De qualquer modo, não é essa a teoria que apresento. Não estou afirmando que o ato natural de comer tenha-se transformado, após milhões de anos, no sacramento cristão. O que digo é que a realidade espiritual, que já existia antes de haver sobre a terra criaturas que comessem, empresta novo significado a esse ato natural e, mais que isso, transforma-o, em determinada situação, num ato distinto. Afirmo, em suma, que são as paisagens reais que entram nos quadros, e não que um dia os quadros vão-se converter em árvores e relvados.

2) Ao pensar naquilo a que chamo de transposição, não posso deixar de perguntar-me se ela nos pode ajudar a compreender a encarnação. É evidente que, se não passasse de uma forma de simbolismo, a transposição de nada nos serviria nesse caso; pelo contrário, desviar-nos-ia completamente, levando-nos de volta a uma nova espécie de docetismo (ou seria ao velho docetismo?), desviando-nos da realidade eminentemente histórica e concreta, que é o centro de nossa esperança, fé e amor. Mas, como já fiz notar, transposição nem sempre é simbolismo. A realidade inferior pode, de fato, numa medida maior ou menor, ser elevada até a realidade superior, chegando a tornar-se parte dela. A sensação que acompanha a alegria converte-se, ela própria, em alegria; podemos até dizer que é a “encarnação da alegria”. Nesse caso, atrevo-me a propor para / consideração, ainda que com grandes dúvidas e apenas em caráter provisório, que o conceito de transposição traz alguma contribuição à teologia — ou pelo menos à filosofia — da encarnação. Pois um dos credos diz-nos que a encarnação operou-se “não pela conversão de Deus em carne, mas pela elevação da humanidade até Deus”. Creio que se possa encontrar aqui uma verdadeira analogia com aquilo a que chamo transposição: o fato de a humanidade, permanecendo o que é, não ser apenas considerada divina, mas ser verdadeiramente integrada na Divindade, compara-se com o que acontece quando a sensação, não sendo ela mesma o prazer, integra-se à alegria que acompanha. Mas ando sobre uma maravilha superior a mim, e submeto tudo à apreciação dos verdadeiros teólogos.

3) Esforcei-me por acentuar, em todo este trabalho, somente a inevitabilidade do erro cometido a cada transposição, quando alguém vem de um plano inferior. A força de tal crítico está nas expressões “meramente” ou “nada mais que”. Ele vê todos os fatos, mas não o significado. É com razão, portanto, que afirma ter examinado todos os fatos. Nada mais existe ali, exceto o significado. Ele é, por conseguinte, no que diz respeito aos dados que possui, como um animal. Com certeza, você já notou que a maioria dos cães não compreende quando você aponta alguma coisa. Apontamos para um pouco de comida no chão: o cão, em vez de olhar para o chão, cheira nosso dedo. Para ele, um dedo é um dedo, nada mais. Em seu mundo, tudo é fato; o significado não existe. Numa época em que predomina o realismo factual, encontramos muita gente que se induz deliberadamente esse tipo de mentalidade canina. Um homem que experimentou o amor dentro de si decidiria analisá-lo por fora e consideraria os resultados de sua análise mais verdadeiros que sua própria experiência. O cúmulo dessa cegueira voluntária é visto nas pessoas que, possuindo consciência, como o resto da humanidade, analisam e estudam o organismo humano como se ignorassem essa consciência. Enquanto perdurar essa deliberada recusa em entender as coisas de cima, mesmo quando esse entendimento é possível, é inútil falar de qualquer triunfo definitivo sobre o materialismo. A crítica feita a partir de um plano inferior contra qualquer experiência, a desconsideração voluntária do significado e a concentração no fato sempre apresentarão a mesma plausibilidade. Sempre haverá provas, provas frescas, todos os meses, de que a religião é apenas psicológica, a justiça, mera autoproteção, a política, simples economia, o amor, pura sensualidade e o pensamento, nada mais que bioquímica do cérebro.

4) Por fim, entendo que o que se disse da transposição traz nova luz à doutrina da ressurreição do corpo. Porque, de certo modo, nada é impossível na transposição. Por maior que seja a diferença entre espírito e natureza, entre a alegria estética e o espasmo do diafragma, entre a realidade e o retrato, a transposição, à sua própria maneira, sempre será satisfatória. Já disse que, no seu desenho, você só tem a brancura do papel para representar o sol, as nuvens, a neve, a água e a carne humana. Por um lado, como é pobre e insuficiente! Mas, por outro, como é perfeito. Se a sombra for bem feita, aquele pedaço de papel branco será, curiosamente, muito semelhante a um raio brilhante de sol; quase nos será possível sentir frio ao ver a neve no papel e aquecer as mãos no desenho do fogo. Será que não poderíamos supor, por analogia até arrazoada, que não há experiência espiritual tão transcendente e sobrenatural ou visão da própria divindade tão íntima e distante de todas as imagens e emoções que não encontre a sua devida correspondência no plano sensorial? Que, não por uma nova sensação, mas pelo incrível fluir daquelas mesmas sensações, temos agora com um significado, uma transposição de valores, do qual não temos aqui a mais tênue idéia?


C.S. Lewis

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Progesso, by Lewis

Todos nós desejamos o progresso, mas se voce está na estrada errada, progresso significa fazer o retorno e voltar para a estrada certa; nesse caso, o homem que volta atras primeiro é o mais progressista.


C.S. Lewis

Jô e Rubem Alves

São duas partes, aconsenho as duas, muito bom mesmo e ainda vale algumas risadas, rs.



Segunda parte:



A Deus Somente A Glória,
Ricardo A. da Silva

terça-feira, 13 de abril de 2010

Vinde a eles as criancinhas?

As sucessivas denúncias de pedofilia e abuso sexual cometidos por sacerdotes e acobertados por bispos e cardeais envergonham a Igreja Católica e abalam a fé de inúmeros fiéis.

No caso da Irlanda, onde mais de 2 mil crianças entregues aos cuidados de internatos religiosos foram vítimas da prática criminosa de assédio sexual, o papa Bento XVI divulgou documento em que pede perdão em nome da Igreja, repudia como abominável o que ocorreu e exige indenização às vítimas.

Faltou ao pontífice determinar punições da Igreja aos culpados, ainda que tenha consentido em submetê-los às leis civis. O clamor das vítimas e de suas famílias exige que a Santa Sé aja com rigor: suspensão imediata do ministério sacerdotal, afastamento das atividades pastorais e sujeição às leis civis que punem tais práticas hediondas.

A crescente laicização da sociedade europeia reduz drasticamente o número de fiéis católicos e a freqüência à igreja. O catolicismo europeu, atrelado a uma espiritualidade moralista e a uma teologia acadêmica, afastado do mundo dos pobres e imbuído de um saudosismo ultramontano que o faz ignorar o Concilio Vaticano II, perde sempre mais o entusiasmo evangélico e a ousadia profética.

Dominado por movimentos fundamentalistas que cultivam a fé em Jesus, mas não a fé de Jesus, o catolicismo europeu cheira a heresia ao incensar a papolatria e encarar o mundo não mais como vale de lágrimas e sim como refém de um relativismo que corrói as noções de autoridade, pecado e culpa.

Ao olvidar a dimensão social do pecado, como a injustiça, a opressão, o latifúndio improdutivo ou a apologia da desigualdade, o catolicismo liberal centrou sua pregação na obsessão sexual. Como se Deus tivesse incorrido em erro ao tornar a sexualidade prazerosa.

Como o Espírito Santo se vale de vias transversas para renovar a Igreja, tomara que as denúncias de pedofilia eclesiástica sirvam para pôr fim ao celibato obrigatório do clero diocesano, permitir a ordenação sacerdotal de homens e mulheres casados e ultrapassar o princípio doutrinário, ainda vigente, de que, no matrimônio, as relações sexuais são admissíveis apenas quando visam à procriação.

Ora, tivesse Deus de acordo com tal princípio, não teria feito do gênero humano uma exceção na espécie animal e, portanto, destituiria o homem e a mulher da capacidade de amar e expressar o amor por meio de carícias e incutiria neles o cio próprio dos períodos procriatórios dos bichos, o que os faz se acasalar.

Jesus foi celibatário, mas é uma falácia deduzir que pretendeu impor sua opção aos apóstolos. Tanto que, segundo o evangelho de Marcos, curou a sogra de Pedro (1, 29-31). Ora, se tinha sogra, Pedro tinha mulher. E ainda foi escolhido como primeiro cabeça da Igreja.

Os evangelhos citam as mulheres que integravam o grupo de discípulos de Jesus: Suzana, Joana etc. (Lucas 8, 1-3). E deixam claro que a primeira pessoa a anunciar Jesus como Deus entre nós foi uma apóstola, a samaritana (João 4, 39).

Nos seminários e casas de formação do clero e de religiosos é preciso avaliar se o que se pretende é formar padres ou cristãos, uma casta sacerdotal ou evangelizadores, pessoas submissas ao figurino romano ou homens e mulheres dotados de profunda espiritualidade evangélica, afeitos à vida de oração e comprometidos com os direitos dos pobres.

No tempo de Jesus, as crianças eram desprezadas por sua ignorância e repudiadas pelos mestres espirituais. Jesus agiu na contramão dos preceitos vigentes ao permitir que as crianças dele se aproximassem e ao citá-las como exemplo de fidelidade a Deus. Porém, deixou claro que seria preferível amarrar uma pedra no pescoço e se atirar na água do que escandalizar uma delas (Marcos 9, 42).

As sequelas psíquicas e espirituais daqueles que confiaram em sacerdotes tarados são indeléveis e de alto custo no tratamento terapêutico prolongado. As vítimas fazem muito bem ao exigir indenização. Resta à Igreja punir os culpados e cuidar para que tais aberrações não se repitam.

Frei Betto, no Estado de Minas

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Mundo, Missão e Igreja

Hoekendijk era um crítico veemente da visão centrada em igreja de missão. No seu pensar, o mundo e o Reino de Deus (Evangelho) estão correlacionados. O Reino de Deus é destinado para o mundo. O mundo é o campo onde as sementes do Reino são semeadas - a cena da proclamação do Reino. [...] No seu esquema, é Deus-Mundo-Igreja e não Deus-Igreja-Mundo. Ele escreveu:

"Assim que nós falamos de Deus, nós também estamos trazendo ao discurso o mundo como palco teatral de Deus para sua ação, e é principalmente a Igreja que o conhece e irá respeitá-lo. Assim que a Igreja reconhece Deus, ela também admite sua própria posição excêntrica implícita, esperando que em algum momento possa ser verdade [o fato de] poder servir como instrumento para honrar o valor e o destino do mundo. A Igreja excêntrica não pode insistir em proteger suas próprias estruturas. Ela não possui uma sociologia particular; ao invés ela usa - apenas funcionalmente - todas as estruturas do mundo disponíveis tanto quanto sejam usáveis."

O relatório "Estrutura Missionária de Congregações' publicado em 1967 sob título "Igreja para Outros" salienta:

"A Igreja existe para o mundo. É chamada para o serviço da humanidade. Não é uma eleição para privilégio mas para compromisso de serviço. A Igreja vive para que o mundo possa conhecer seu próprio ser. É pars pro toto, é o primeiro fruto da nova criação. Mas seu centro está fora de si; ela deve viver ex-cêntrica. Ela deve buscar aquelas instituições no mundo que conclamam a viver responsavelmente e ali ela deve anunciar e apontar para o shalom, aquela posição ex-cêntrica da Igreja implica que nós devemos parar de pensar de dentro pra fora."

[...] Não é suficiente tentar resolver os problemas de eclesiologia adicionando 'missão' à marca clássica da igreja. O que é necessário é mover a eclesiologia para fora do centro da preocupação teológica, pois assim que a eclesiologia torna-se central, ela é falsificada. O caminho para uma verdadeira eclesiologia deve ser indireta, pois a igreja foi feita não para ser um fim em si mesma mas a serva da missão de Deus no mundo.

Pelo final da década de 60, emergiu no movimento ecumênico um consenso geral de que os problemas eclesiológicos poderiam somente serem resolvidos ao ir primeiro além da igreja e fazendo a pergunta sobre a missão de Deus no mundo. Teólogos falaram da igreja em termos funcionais, como um projeto - um caminho de obediência que deve ser continuamente moldado dentro da situação particular na história sob a luz do propósito derradeiro de Deus para a história. Eles afirmaram que o papel da igreja não era atrair o mundo para dentro da ordem da igreja.

Nós devemos parar de pensar na salvação derradeira do mundo como um processo no qual o Senhorio de Cristo sobre o seu Corpo é expandido até que enfim ele atrai o mundo inteiro para dentro do seu domínio. A igreja é a serva da luta de Cristo para trazer nova vida às comunidades do mundo, à Sua criação como um todo. A luta para revelar o Senhorio de Cristo sobre sua criação deve ser relacionada às verdadeiras lutas do povo nas estruturas sociais e políticas de nosso tempo. A igreja pode ser a igreja somente sendo a comunidade da obediência a Cristo dentro das estruturas de vida onde a existência humana já é encenada. "A Casa de Deus não é a Igreja mas o mundo, onde a Igreja habita e trabalha como sua serva."

Colin Williams faz a pergunta: "aonde devemos procurar pela Igreja?" Ele diz que a igreja é um evento; é onde o povo de Deus toma a forma de servo ao redor das necessidades e esperanças do mundo - como servos de Cristo e portanto servos da humanidade. Isto significa que [a] igreja é chamada para se mudar para dentro do mundo como Cristo ainda se move no mundo. Cristo não veio como alguém despejando respostas pré-estabelecidas, aquele que traria uma ordem eterna imutável para dentro de nossa ordem temporal mutável. Ele veio como um participante integral na história. Ele veio como alguém cuja liberdade foi sua completa liberdade para as necessidades do mundo, mudando-se de detrás das barricadas da segurança e ordem assumidas para estender a mão para os excluídos [da] comunidade, criando [a] força do amor servil.

[...] Em várias partes do mundo hoje [1966], a Igreja representa uma minoria relativamente pequena, participando na luta pelo futuro do homem lado a lado outros movimentos religiosos ou seculares. Ainda mais, ela pode esperar contribuir para a transformação do mundo somente na medida em que ela própria for transformada em contato com o mundo.

Leia +. (em Inglês)


Missiologia Ecumênica do Século XX por T.V. Philip (trechos selecionados)
Tradução: Gustavo K-fé Frederico

A Igreja é o mundo

M.M. Thomas (1916-1996) foi o pensador cristão indiano melhor conhecido neste século [XX]. Ele foi o moderador do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas de 1968 a 1975. Nos seus escritos e discursos, ele enfatizava a importância do secular para a integralidade da vida e missão da igreja. De acordo com ele, a igreja não é uma esfera de existência distinta e separada do mundo natural e da história. A igreja é nada menos do que o secular, o qual conhece sua verdadeira realidade na era nova inaugurada por Cristo. A igreja é o mundo, a qual sabe ela mesma estar em Cristo, sob o julgamento e a graça do Cristo crucificado e ressurreto. Contrastando com aqueles que construiriam a comunidade de fé como um céu no meio de uma sociedade secular, Thomas falou da igreja consistindo primariamente de leigos fazendo seus trabalhos seculares e testemunhando à verdadeira vida do secular.


Missiologia Ecumênica do Século XX por T.V. Philip
Tradução: Gustavo K-fé Frederico

domingo, 11 de abril de 2010

Falando em linguas

Para variar, aqui vai mais uma do projeto Plataforma, mas agora com Glauber Plaça, e para quem quiser conhecer mais do projeto plataforma clique aqui, rs.



A Deus Somente A Glória,
Ricardo A. da Silva

Há tempo para tudo

Todos os dias quando acordo não tenho mais o tempo que passou
Para tudo há uma ocasião certa
Mas tenho muito tempo
há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu
Temos todo o tempo do mundo
tempo de nascer e tempo de morrer

Todos os dias antes de dormir lembro e esqueço como foi o dia
tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou
Sempre em frente
Deus pôs no coração do homem o anseio pela eternidade
Não temos tempo a perder
Não há nada melhor para o homem do que ser feliz e praticar o bem

Nosso suor sagrado é bem mais belo que esse sangue amargo
Que proveito tem o trabalhador naquilo com que se afadiga?
E tão sério
Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão
E selvagem. Selvagem.
todos têm o mesmo fôlego de vida
Selvagem
e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque tudo é vaidade

Veja o sol dessa manhã tão cinza
Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos
Descobri também que debaixo do sol: no lugar da justiça havia impiedade
Então me abraça forte
Comer, beber e ser recompensado pelo seu trabalho é um presente de Deus
E diz mais uma vez que já estamos distantes de tudo
tempo de procurar e tempo de desistir

Temos nosso próprio tempo
tempo de chorar e tempo de rir
Não tenho medo do escuro mas deixe as luzes acesas agora
tempo de abraçar e tempo de se conter

O que foi escondido é o que se escondeu
tempo de procurar e tempo de desistir
E o que foi prometido ninguém prometeu
nada se pode acrescentar, e nada se pode tirar
Nem foi tempo perdido
Tudo o que Deus faz permanecerá para sempre

Somos tão jovens... tão jovens.
Deus fará renovar-se o que se passou
Tão jovens
Para tudo há uma ocasião certa.


Renato Russo & autor de Eclesiastes

Para todos os mineiros

Ai vai, rs.



A Deus Somente A Glória,
Ricardo A. da Silva

sábado, 10 de abril de 2010

Apologia de um Deus ausente

W.B. Yeats escreveu que todas as nossas ideias sobre Deus são "lixo e purpurina", como um vestido de casamento de mau gosto que esconde a verdade que há por baixo. Karen Armstrong, uma das melhores escritoras vivas sobre religião, concorda.

Mas, em seu último livro, "The Case for God" [Em Defesa de Deus, ed. Bodley Head, 376 págs., 20, R$ 62], afirma que houve um tempo em que as pessoas entendiam melhor Deus.

"O Deus moderno parece o Alto Deus da Antiguidade remota, uma teologia que foi unanimemente descartada ou radicalmente reinterpretada por ser considerada inapta", ela escreve. Em outras palavras, nossa ideia de Deus, sejamos ateus ou crentes, regrediu ao infantil.

Os maiores ofensores são aqueles que tratam Deus como um super-homem intervencionista, que resolve os problemas. O catálogo de Armstrong de culpados ineptos inclui políticos que apelam a Deus para justificar suas políticas, terroristas que o invocam para cometer atrocidades e cientistas que encaixam Deus em uma teoria física, mesmo que só para desbancá-lo.

A ciência, afirma a autora, teve uma influência profundamente equívoca em crentes e descrentes. Quando [o biólogo] Richard Dawkins ataca Deus, seu alvo é um absurdo superprojetista, necessariamente mais complexo que qualquer das complexidades da natureza. Além disso, há cientistas crentes que veem Deus como uma espécie de técnico de sintonia fina.

Na verdade, as noções modernas de Deus, diz Armstrong, são principalmente enganos de teólogos que, a partir do século 17, tentaram explorar a ciência como um suporte da fé. Essa busca racional por Deus, diz ela, na verdade incentivou o ateísmo.

A autora também indica que a teologia baseada na ciência é notoriamente inconfiável. Quando um teólogo conjura Deus para preencher uma lacuna em nosso conhecimento, uma nova teoria pode ejetá-lo.

Deus insondável

E a ideia de Deus como uma "coisa" ou um "ser", ou um objeto no mundo que disputa a atenção com outros objetos, minou um sentido mais profundo e misterioso de Deus que se desenvolveu em todas as fés ao longo dos séculos.

Armstrong tenta isolar o que ela considera a ideia perdida crucial de Deus como o insondável e indizível. Qualquer coisa aquém de admitir a natureza inefável de Deus, insiste, leva à idolatria -adorar um deus de nossa própria criação. Por definição, não há uma maneira fácil de escrever sobre o inarrável.

Uma de suas tentativas, no centro do livro, envolve os ensinamentos do filósofo cristão Dionísio Areopagita [teólogo do século 6º, assumiu como pseudônimo um nome bíblico].

"Primeiro temos de afirmar que Deus é", ela escreve. "Deus é uma rocha, Deus é uno, Deus é bom, Deus existe. Mas quando escutamos cuidadosamente a nós mesmos, caímos em silêncio, abatidos pelo peso do absurdo que há nessa conversa de Deus."

Na fase seguinte, negamos esses atributos. "Mas o "caminho da negação" é apenas tão impreciso quanto o "caminho da afirmação". Como não sabemos o que Deus é, não podemos saber o que Deus não é, e portanto devemos negar as negações...", ela diz.

A fase final, se você continuar a bordo, é um estado que os místicos chamam de "noite escura da alma", ou a nuvem do desconhecimento. É duro escrever sobre Deus, afirma. Assim como ler sobre Ele.

Amadurecimento

Mas apenas pensar em Deus não adianta; Armstrong insiste em que sentir Deus depende de oração, ritual, escritura e silêncio; é um processo, mais que uma conclusão lógica. E nenhuma fé individual tem o monopólio da iluminação.

Se as religiões conseguissem retornar à verdadeira iluminação, seríamos capazes, ela escreve, citando John Keats [1795-1821], de lidar com "incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer busca irritante por fato e razão".

Quais são as perspectivas do apelo de Armstrong por uma compreensão mais iluminada? Alguns carolas começam a se voltar para uma abordagem mais criativa, menos científica e dogmática da fé.

Ela acredita que um entendimento mais maduro de Deus diminuiria o antagonismo entre ciência e religião, reduziria a violência inspirada na religião e provocaria mais compaixão.
Infelizmente, a história mostra que a maioria das tentativas de combater elementos prejudiciais dentro da religião tende a provocar reações dos extremos. Armstrong está consciente disso; mas este livro, escrito com paixão, prodigiosamente pesquisado, é uma súplica poderosa para se tentar.


John Cornwell, na Folha de S.Paulo.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Teste para a humanidade

O desastre que se abateu sobre o Haiti, arrasando Porto Príncipe e matando milhares de pessoas e privando o povo das estruturas mínimas para a sobrevivência, representa um teste para a humanidade. Segundo os prognósticos dos que acompanham sistematicamente o estado da Terra, não demorará muito e seremos confrontados com vários Haitis, com milhões e milhões de refugiados climáticos, provocados por eventos extremos que poderão ocasionar uma verdadeira devastação ecológica e dizimar incontáveis vidas humanas. O Haiti pode ser um sinal do anjo exterminador que passa, sinistro, ceifando vidas.

É neste contexto que duas virtudes, ligadas à essência do humano deverão ganhar especial relevância: a hospitalidade e a solidariedade.

A hospitalidade, já o viu o filósofo Kant, é um direito e um dever de todos, pois todos somos habitantes, melhor, filhos e filhas da mesma Terra. Temos o direito de circular por ela, de receber e de oferecer hospitalidade. Estarão as nações dispostas a atender a este direito básico àquelas multidões que já não poderão viver em suas regiões superaquecidas, sem água e sem colheitas? O instinto de sobrevivência não respeita os limites dos estados-nações. Os bárbaros de outrora derrubaram impérios e os novos "bárbaros"de hoje não farão outra coisa, caso não sejam exterminados pelos ecofacistas que usurparam a Terra para si. Paro por aqui porque os cenários prováveis e não impossíveis são dantescos.

A segunda virtude é a solidariedade. Ela é inerente à essência social do ser humano. Já os clássicos do estudo da solidariedade como Renouvier, Durkheim, Bourgeois e Sorel enfatizaram o fato de que uma sociedade não existe sem a solidariedade de uns para com os outros. Ela supõe uma consciência coletiva e o sentimento de pertença entre todos. Todos aceitam naturalmente viver juntos para juntos realizarem a política que é a busca comum do bem comum.

Devemos submeter à crítica o conceito da modernidade que parte da absoluta autonomia do sujeito na solidão de sua liberdade. Diz-se: cada um deve fazer o seu sem precisar dos outros. Para os seres humanos assim solitários poderem viver juntos precisam, de fato, de um contrato social, excogitado por Rousseau, Locke e Kant. Mas esse individualismo é ilusório e falso. Há que se reconhecer o fato real e irrenunciável de que o ser humano é sempre um ser de relação, um-ser-com-os-outros, sempre enredado numa trama de conexões de toda ordem. Nunca está só. O contrato social não funda a sociedade mas apenas a ordena juridicamente.

Ademais, a solidariedade possui um transfundo cosmológico. Todos os seres, desde os topquarks e especialmente os organismos vivos são seres de relação e ninguém vive fora da rede de inter-retro-conexões. Por isso, todos os seres são reciprocamente solidários. Um ajuda o outro a sobreviver - é o sentido da biodiversidade - e não necessariamente são vítimas da seleção natural. Ao nivel humano, ao invés da seleção natural, por causa da solidariedade, interpomos o cuidado, especialmente para com mais vulneráveis. Assim não sucumbem aos interesses excludentes de grupos ou de um tipo de cultura feroz que coloca a ambição acima da vida e da dignidade.

Chegamos a um ponto da história no qual todos nos descobrimos entrelaçados na única geosociedade. Sem a solidariedade de todos com todos e também com a Mãe Terra não haverá futuro para ninguém. As desgraças de um povo são nossas desgraças, suas lágrimas são nossas lágrimas, seus avanços são nossos avanços. Seus sonhos são nossos sonhos.

Bem dizia Che Gevara:"A solidariedade é a ternura dos povos". Essa ternura temos que exercer para com nossos irmãos e irmãs do Haiti que estão agonizando.


Leonardo Boff

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Lamento junto a Deus pelo Haiti

Há uma via-sacra de sofrimento com estações que nunca acabam no pequeno e pobre pais do Haiti. Sofrimento no corpo, na alma, no coração, na mente assaltada por fantasmas de pânico e de morte. Há também muito sofrimento em todos os humanos que não perderam o senso mínimo de humanidade e de solidariedade. Desta com-paixão universal nasce uma misteriosa comunidade que anula as diferenças, as religiões, as ideologias que antes nos separavam e até nos dividam. Agora só conta a comum humanitas absurdamente maltratada e que deve ser socorrida.

Em cada haitiano que sofre soterrado ou que morre de sede e de fome, morremos um pouco também todos nós junto com eles. Finalmente somos irmãos e irmãs da única e mesma família humana. Como não sofrer?

Mas há também um sofrimento profundo e dilacerante nas pessoas de fé que proclamam que Deus é Pai e Mãe de bondade e de amor. Como continuar a crer? Queixosos nos perguntamos: "Deus, onde estavas quando se formou aquele tremor raso que dizimou os teus filhos e filhas mais pobres e sofridos de todo o extremo Ocidente? Por que não intervieste? Não és o Criador da Terra com seus continentes e suas placas tectônicas? Não és Pai e Mãe de ternura, especialmente, daqueles que são como teu Filho Jesus os injustamente crucificados da história? Por que"?

Este silêncio de Deus é aterrador porque ele simplesmente não tem resposta. Por mais que gênios como Jó, Buda, Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Leibniz e outros tivessem arquitetado argumentos para isentar Deus e esclarecer a dor, nem por isso a dor desaparece e a tragédia deixa de existir. A compreensão da dor não suspende a dor, assim como ouvir receitas culinárias não faz matar a fome.

O próprio Jesus não foi poupado da angústia do sofrimento. Do alto da cruz lançou um brado lancinante ao céu, queixando-se:"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste"?

Damos razão a Jó, irritado com seus "amigos" que lhe queriam explicar o sentido de sua dor:"Vós não sois senão charlatães, não sois senão médicos de mentira; se ao menos vos calásseis, os homens tomar-vos-iam por sábios". Mas não podemos calar. A dor é demasiada e a noite, tenebrosa. Precisamos de alguma luz.

Mesmo sem luz, continuamos a crer com o coração partido, porque estamos convencidos de que o caos e a tragédia não podem ter a última palavra. Deus é tão poderoso que pode tirar um bem do mal. Apenas não sabemos como. Esperançosos, fazemos uma aposta nesta possibilidade que não deixa nossas lágrima serem vãs. Ademais, cremos que Deus pode ser aquilo que nós não compreendemos. Acima da razão que quer explicações, há o mistério que pede silêncio e reverência. Ele esconde o sentido secreto de todos os eventos também daqueles trágicos.

Identifico-me com o poema de um grande argentino que perdeu um filho na repressão militar: Juan Gelman:

"Pai, desce do céus, esqueci as orações que me ensinou minha avó, pobrezinha, ela agora repousa, não tem mais que lavar, limpar, não tem mais que preocupar-se, andando o dia todo atrás da roupa, não tem mais que velar de noite, penosamente, rezar, pedir-te coisas, resmungando docemente".

"Pai, desce dos céus, se estás, desce, então, pois morro de fome nesta esquina, não sei para que serve haver nascido, olho as mãos inchadas, não tem trabalho, não tem, desce um pouco, contempla isto que sou, este sapato roto, esta angústia, este estômago vazio, esta cidade sem pão para meus dentes, a febre, cavando-me a carne, este dormir assim, sob a chuva, castigado pelo frio, perseguido".

"Te digo que não entendo, Pai, desce, toca-me a alma, toca-me o coração, eu não roubei, nem assassinei, fui criança e em troca me golpeiam e golpeiam, te digo que não entendo, Pai, desce, se estás, pois busco resignação em mim e não tenho e vou encher-me de raiva e estou disposto a brigar e vou gritar até estourar o pescoço de sangue, porque não posso mais, tenho rins, e sou um homem, desce".

"Que fizeram de tua criatura, Pai? Um animal furioso que mastiga a pedra da rua? Pai, desce".

Que o Pai desça sobre os haitianos com seu amor.


Leonardo Boff

quarta-feira, 7 de abril de 2010

terça-feira, 6 de abril de 2010

Eu tb

"Eu, há muito aceitei e vi que de fato não vejo; percebi que de fato não discirno; entendi minha limitação de entendimento; constatei que meu melhor amor é ainda por mim mesmo e por meus sonhos; aprendi que meus amores são 'meus' e por 'minha causa' [...]"


Caio Fábio

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Eu vivo sonhando

Aqui vai mais uma do Projeto Plataforma, e agora estreiando no meu blog Roberto Diamanso, eh a primeira musica dele q posto aqui, mas recomendo todas!!! Então, bom proveito, rs.



A Deus Somente A Glória,
Ricardo A. da Silva

Bosques sombrios e lartenas

Não se pode ensinar as delícias do amor com aulas de anatomia e fisiologia dos órgãos sexuais. Se assim fosse o livro “Cântico dos Cânticos”, das Sagradas Escrituras, nunca teria sido escrito. Não se pode ensinar o prazer da leitura com aulas sobre as ciências da linguagem. O conhecimento da gramática e das ciências da interpretação não fazem poetas. Noel Rosa sabia disso e cantou: “Samba não se aprende no colégio…”

Tomei o livro de poemas de Robert Frost e li um dos seus mais famosos poemas. “Os bosques são belos, sombrios, fundos. Mas há muitas milhas a andar e muitas promessas a guardar antes de se poder dormir. Sim, antes de se poder dormir.” Li vagarosamente. Porque cada poema tem um andamento que lhe é próprio. Como na música. Se o primeiro movimento da “Sonata ao Luar”, de Beethoven, que todos já ouviram e desejam ouvir de novo, “adagio sostenuto”, fosse tocado como “presto”, rapidamente – exatamente as mesmas notas! – a sua beleza se iria.

Ficaria ridículo. Porque o “presto” é incompatível com aquilo que o primeiro movimento está dizendo. O tempo de uma peça musical pertence à sua própria essência. Eu até já sugeri que os escritores imitassem os compositores que, como medida protetora da beleza, colocam, ao início de uma peça, uma informação sobre o “tempo” em que ela deve ser tocada: grave, andante, vivace, mestoso, allegro. Cada texto literário tem também o seu próprio tempo. Há textos que devem ser lidos ao ritmo de uma criança pulando corda e dando risadas. Como o poema da Cecília “Leilão de Jardim”: “ Quem me compra um jardim com flores? Borboletas de muitas cores, lavadeiras e passarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos?” O poema inteiro é marcado por essa alegria infantil, saltitante. Quando se passa para a sua “Elegia”, escrita para a sua avó morta, o clima é outro. Há uma tristeza profunda. Há de se ler lentamente, com sofrimento: “Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que tinha caído.”

Li vagarosamente. O poema pede para ser lido vagarosamente. Terminada a leitura não me atrevi a dizer nada. É preciso que haja silêncio. A música só existe sobre um fundo de silêncio. É no silêncio que a beleza coloca os seus ovos. É no silêncio que as palavras são chocadas. É no silêncio que se ouve aquela outra voz mencionada por Fernando Pessoa, voz habitante dos interstícios das palavras do poeta. (Por isso fico profundamente irritado quando alguém fala enquanto a música é tocada. É como se estivesse a ver uma partida de futebol enquanto se faz amor…). Passados alguns momentos de silêncio (como o silêncio que existe entre os dois movimentos de uma sonata) pus-me a ler o mesmo poema de novo, com a mesma música. E aí, então, no silêncio que se seguiu à segunda leitura, ouvi um soluço no fundo da sala. Uma jovem chorava. Jamais me passaria pela cabeça que ela estivesse chorando por causa do poema. Embora ele me comova muito, minha comoção nunca chegou ao choro. Pensei que se tratasse de um sofrimento de sua vida privada. Diante de um soluço tudo pára. Agora o que importava não era o poema, era aquele soluço. “Que aconteceu?”, perguntei. “Não sei, professor. Esse poema me deu uma tristeza imensa”. Eu quis entender: “Mas o que, no poema, lhe deu tristeza?” “Não sei professor. Só sei que esse poema me faz chorar…”

Lembrei-me de Fernando Pessoa: “… e a melodia que não havia, se agora a lembro, faz-me chorar.” Grande mistério esse: é o que não há que provoca o choro. Como disse Valéry, vivemos pelo poder das coisas que não existem. Por isso os deuses são tão poderosos… (Essa jovem, que assim me marcou de forma inesquecível, pouco tempo depois morreu num desastre de carro. Espero que ela, no outro mundo, tenha visitado os bosques “belos, sombrios e fundos” de Robert Frost).

Houve beleza e mistério porque eu não me meti a interpretar o poema. E, no entanto, a interpretação de textos parece ser uma das obsessões dos programas escolares. Se o meu propósito fosse interpretar o poema de Frost, para aproveitar o tempo eu o teria lido um pouco mais depressa, teria desprezado o silêncio e não teria repetido a leitura. Essas coisas nada tem a ver com a interpretação. A interpretação acontece a partir daquilo que está escrito, se devagar ou depressa não importa. Minha primeira pergunta teria sido: “O que é que Robert Frost queria dizer?” Toda interpretação começa com essa pergunta. É a pergunta que surge numa zona de obscuridade: há sombras no texto. O intérprete é um ser luminoso. Não suporta sombras. Ele trás então suas lanternas, suas idéias claras e distintas, e trata de iluminar os bosques sombrios… Não percebe que ao tentar iluminar os bosques, dele fogem as criaturas encantadas que habitam as sombras. Esquecem-se do que disse Bachelard: “Parece que existe em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante…” O inconsciente é um bosque sombrio… ( Mês que vem continuamos a conversa…)


Rubem Alves
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