segunda-feira, 5 de abril de 2010

Bosques sombrios e lartenas

Não se pode ensinar as delícias do amor com aulas de anatomia e fisiologia dos órgãos sexuais. Se assim fosse o livro “Cântico dos Cânticos”, das Sagradas Escrituras, nunca teria sido escrito. Não se pode ensinar o prazer da leitura com aulas sobre as ciências da linguagem. O conhecimento da gramática e das ciências da interpretação não fazem poetas. Noel Rosa sabia disso e cantou: “Samba não se aprende no colégio…”

Tomei o livro de poemas de Robert Frost e li um dos seus mais famosos poemas. “Os bosques são belos, sombrios, fundos. Mas há muitas milhas a andar e muitas promessas a guardar antes de se poder dormir. Sim, antes de se poder dormir.” Li vagarosamente. Porque cada poema tem um andamento que lhe é próprio. Como na música. Se o primeiro movimento da “Sonata ao Luar”, de Beethoven, que todos já ouviram e desejam ouvir de novo, “adagio sostenuto”, fosse tocado como “presto”, rapidamente – exatamente as mesmas notas! – a sua beleza se iria.

Ficaria ridículo. Porque o “presto” é incompatível com aquilo que o primeiro movimento está dizendo. O tempo de uma peça musical pertence à sua própria essência. Eu até já sugeri que os escritores imitassem os compositores que, como medida protetora da beleza, colocam, ao início de uma peça, uma informação sobre o “tempo” em que ela deve ser tocada: grave, andante, vivace, mestoso, allegro. Cada texto literário tem também o seu próprio tempo. Há textos que devem ser lidos ao ritmo de uma criança pulando corda e dando risadas. Como o poema da Cecília “Leilão de Jardim”: “ Quem me compra um jardim com flores? Borboletas de muitas cores, lavadeiras e passarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos?” O poema inteiro é marcado por essa alegria infantil, saltitante. Quando se passa para a sua “Elegia”, escrita para a sua avó morta, o clima é outro. Há uma tristeza profunda. Há de se ler lentamente, com sofrimento: “Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que tinha caído.”

Li vagarosamente. O poema pede para ser lido vagarosamente. Terminada a leitura não me atrevi a dizer nada. É preciso que haja silêncio. A música só existe sobre um fundo de silêncio. É no silêncio que a beleza coloca os seus ovos. É no silêncio que as palavras são chocadas. É no silêncio que se ouve aquela outra voz mencionada por Fernando Pessoa, voz habitante dos interstícios das palavras do poeta. (Por isso fico profundamente irritado quando alguém fala enquanto a música é tocada. É como se estivesse a ver uma partida de futebol enquanto se faz amor…). Passados alguns momentos de silêncio (como o silêncio que existe entre os dois movimentos de uma sonata) pus-me a ler o mesmo poema de novo, com a mesma música. E aí, então, no silêncio que se seguiu à segunda leitura, ouvi um soluço no fundo da sala. Uma jovem chorava. Jamais me passaria pela cabeça que ela estivesse chorando por causa do poema. Embora ele me comova muito, minha comoção nunca chegou ao choro. Pensei que se tratasse de um sofrimento de sua vida privada. Diante de um soluço tudo pára. Agora o que importava não era o poema, era aquele soluço. “Que aconteceu?”, perguntei. “Não sei, professor. Esse poema me deu uma tristeza imensa”. Eu quis entender: “Mas o que, no poema, lhe deu tristeza?” “Não sei professor. Só sei que esse poema me faz chorar…”

Lembrei-me de Fernando Pessoa: “… e a melodia que não havia, se agora a lembro, faz-me chorar.” Grande mistério esse: é o que não há que provoca o choro. Como disse Valéry, vivemos pelo poder das coisas que não existem. Por isso os deuses são tão poderosos… (Essa jovem, que assim me marcou de forma inesquecível, pouco tempo depois morreu num desastre de carro. Espero que ela, no outro mundo, tenha visitado os bosques “belos, sombrios e fundos” de Robert Frost).

Houve beleza e mistério porque eu não me meti a interpretar o poema. E, no entanto, a interpretação de textos parece ser uma das obsessões dos programas escolares. Se o meu propósito fosse interpretar o poema de Frost, para aproveitar o tempo eu o teria lido um pouco mais depressa, teria desprezado o silêncio e não teria repetido a leitura. Essas coisas nada tem a ver com a interpretação. A interpretação acontece a partir daquilo que está escrito, se devagar ou depressa não importa. Minha primeira pergunta teria sido: “O que é que Robert Frost queria dizer?” Toda interpretação começa com essa pergunta. É a pergunta que surge numa zona de obscuridade: há sombras no texto. O intérprete é um ser luminoso. Não suporta sombras. Ele trás então suas lanternas, suas idéias claras e distintas, e trata de iluminar os bosques sombrios… Não percebe que ao tentar iluminar os bosques, dele fogem as criaturas encantadas que habitam as sombras. Esquecem-se do que disse Bachelard: “Parece que existe em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante…” O inconsciente é um bosque sombrio… ( Mês que vem continuamos a conversa…)


Rubem Alves

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