domingo, 31 de maio de 2009

Ócio Literário

Antigamente, quando não tinha nada para fazer, zapeava. Colocava a mente em ponto morto e matava o tempo com a estupidificação televisiva. Sem parar dez segundos, corrria todos os canais. Ouvia torsos gaguejantes. Assistia à noticiários repetitivos. Encharcava o coração de asneiras religiosas.

Hoje a noite, estou sem fazer nada. Com um Merlot devidamente climatizado na frente, pensei no que gastar o tempo. “Vou escrever”, respondi, sussurrando. Mas o quê? "Vou deixar-me vencer por meu novo vício, esse hábito horroroso que me escraviza". Sou um drogadito literário; não consigo passar um dia sem redigir uma bobagem qualquer.

Também admito: sou um escritor sem cacife, por mais que procure me definir.

Sou um amador. No colégio, enquanto rolavam as aulas de português, eu só olhava para a alça do sutien da Glorinha, que sentava na minha frente. Minhocas e asteriscos passavam por minha cabeça adolescente, bêbada de hormônios. Como posso, hoje, arvorar-me a exceder na literatura?

Serei um acadêmico? Certamente, não. Falta-me a linguagem hermética, tão característica dos eruditos. Quando tento argumentar, sou presa fácil. Recentemente, mandaram-me um texto que me desconstruía. O professor da universidade mostrou por a mais b a minha inconsistência. Admito, sou um horror na apologética.

Serei um ensaísta? Nada. Não consigo ineditismo em minhas idéias. Aceito de bandeja a minha repetição. Redundante, volto a temas surrados. Descasco a mesma fruta várias vezes. Os leitores reclamam: “De novo? Muda o disco, pô”!

Não sou um cronista. Como assinante da “Folha de São Paulo”, babo com Clóvis Rossi, Eliane Cantanhêde e Carlos Heitor Conny. Destros, todos os dias eles comentam algum assunto. Grandes cronistas que sabem tratar trivialidades diárias como de suma importância. No cotidiano, encontram temas para encher páginas.

Não posso arvorar-me de poeta. Minha sintaxe claudica. A rimas são pobres e as métricas, incertas. Falta-me a metáfora surpreendente. Não tenho o tirocínio genial de um Pessoa ou de um Chico Buarque.

Por que escrevo, então? Por absoluto egoísmo; sinto-me bem. Gosto de ser ameaçado pela palavra. A dor de parir um texto tanto me exaure como me extasia. Fico fascinado com o desespero de não saber acabar o que comecei.

Acredito em anjos e demônios. Já os vi sobrevoando o teclado; buscavam tomar posse da minha escrita. Como Jacó, amo lutar com eles, e prevalecer. Exorcizo Satanás quando tenta com tibiez. Resisto-lhe quando procura me prender ao politicamente correto.

Também desprezo os anjos bons. Não aceito que me ajudem a criar uma obra prima. Prefiro a minha Ricardice. Posso não encantar os críticos; enervar admiradores, que esperavam muito mais de mim; agravar o ódio de quem suspeitava que não passo de um cearense metido a besta, mas a literatura me salva e me faz feliz.

Estranhamente conectado ao divino, sinto-me próximo de minha alma e isso é bom. Aleluia.


Ricardo Gondim

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Esperança e que nos move

Esperança é uma força que nos move a lutar, não porque vai dar certo, mas porque vale a pena. Os medíocres buscam a gratificação imediata dos seus atos, os grandes pelejam agradecidos pelo mero privilegio de se acharem dignos da nobre causa. Muitos já lutaram sem nunca alcançarem promessa alguma. Lembre-se de que mulheres receberam pela ressurreição os seus mortos. Alguns foram torturados, não aceitando seu livramento; outros experimentaram escárnios e açoites, e até cadeias e prisões. Foram apedrejados, serrados, tentados, mortos ao fio da espada; andaram vestidos de pele de ovelhas e de cabras, desamparados, aflitos e maltratados, errantes pelos desertos e montes, pelas covas e cavernas da terra. Esses receberam o melhor elogio da bíblia: “Homens e mulheres dos quais o mundo não era digno” (Hebreus 11.35-39).



Ricardo Gondim

Citação do livro "O que os evangelicos não dizem"

da editora Ultimato

terça-feira, 26 de maio de 2009

Anseios transcendentais

Na precocidade do dia, antes da fúria do sol, amanheço com sede. Desperto sem saber nomear o que me falta. Carrego uma fome crônica. Convivo com um vazio existencial. Sofro de Síndrome da Nostalgia Difusa.

Minha alma não se conforma com a presença viva dos que já morreram. Quero minha mãe de volta. Ela parece estar por perto. Digo que vou segredar-lhe algumas percepções tardias do meu coração. Pego o telefone, aguardo, instintivamente, que ela me atenda do outro lado da linha. Desisto, mamãe repousa no fundo do armário de minhas memórias.

Melancólico, procuro cheiros, sabores, fotografias, músicas que me devolvam o passado que a poeira das décadas enterrou. Minha dor só aumenta. Bisonho, corro; os quilômetros me encharcam de suor, mas continuo inconsolável.

Meus olhos não se aquietam com a palidez da vida. Condiciono-me a mirar o mundo refulgente, mas o sofrimento universal, injusto e desproporcional, agride. Revolvo-me em culpa. Sou privilegiado em uma realidade desigual. Meus esforços para aliviar o suplício da miséria foram pífios. Não discerni corretamente as estruturas demonizadas da política que discrimina, privilegia, marginaliza. Quando cheguei a compreender os perigos do poder, estava fatigado e sem disposição para vestir a capa do profeta. Contento-me em falar às paredes que a corrupção sistêmica, os vícios históricos, as maquinações das elites não cumprem um desígnio da Providência. São um acinte à Divindade.

Meu coração não se pacifica com os lenitivos episódicos que a vida apresenta. Uma força estranha impulsiona o meu espírito a desejar alguma coisa que desconheço. As delícias da viagem se esgotam no estresse do aeroporto; a expectativa da festa deixa uma sensação crepuscular: tudo é efêmero; o fogo da paixão se apaga no desgaste da relação. Meu desejo é parecido com o do Chico. O que será que será que tanto quero e que vive nas idéias desses amantes/ Que cantam os poetas mais delirantes/ que juram os profetas embriagados/ está na romaria dos mutilados/ está nas fantasias dos infelizes/ está no dia a dia das meretrizes?

Meu coração não se deixa seduzir por poções mágicas. Reconheço: não existem porto feliz, Campos Elísios ou estados nirvânicos. Não há onde possa rasgar os sacos do lamento e soprar as cinzas do arrependimento. Viver consiste no eterno dever de persistir, mesmo quando não existe razão nenhuma para continuar semeando boas sementes e espalhando bons perfumes.


Ricardo Gondim

A Humildade

obre a humildade, concordo com André Comte-Sponville: “Não é a ignorância do que somos, mas, ao contrário, conhecimento, ou reconhecimento de tudo o que não somos”. É a admissão de que cheguei onde estou sem gabar-me: “sou o que sou pela graça”.

Quando penso em humildade, acompanho Dwight Moody: “O homem pode demonstrar um falso amor, uma falsa fé, uma falsa esperança e outras graças, mas jamais poderá simular humildade”. Também concordo com Stanley Jones: “A essência do divino é a humildade. O primeiro passo para encontrar a Deus é destruir nosso orgulho”.

A humildade não sobrevive sem que se aniquilem as falsas onipotências. O petulante não admite fragilidades, não reconhece limites, não aceita inadequações. O soberbo se embrutece porque é insaciável. Apropria-se da pergunta do poeta: “Por que não é infinito o poder humano, como o desejo?” Dionisíaco, atropela quem estiver na frente. Odeia ser frustrado.

Spinoza dizia que “a humildade é uma tristeza nascida do fato de o homem considerar sua impotência ou sua fraqueza”. Nietzsche bateu o martelo: “Conheço-me demais para me glorificar do que quer que seja”. E Comte-Sponville conclui: “O que é mais ridículo do que bancar o super-homem?... A humildade é o ateísmo na primeira pessoa: o homem humilde é ateu de si, como o não-crente o é de Deus”.

A humildade e a gratidão necessitam uma da outra. O humilde sabe que não se fez; não é o self-made man, que se recusa a reconhecer os que lhe ajudaram nos primeiros degraus. Sente-se devedor dos pais que se sacrificaram para que estudasse, dos professores que lhe incutiram valores, dos amigos que nunca censuraram na vergonha, dos poetas que traduziram beleza, dos profetas que lhe falaram em nome de Deus. Nos solilóquios, repete: “Não sou a causa de mim mesmo; vejo nos outros a raiz da minha alegria; celebro o meu presente como um dom".

A humildade é esvaziamento. O prepotente não consegue amar. Só quem abre mão dos controles sabe deixar-se invadir pela compaixão.

Simone Weil afirmou que “o amor consente tudo e só comanda os que consentem em ser comandados”. Amor é renúncia. Não existe a possibilidade de coerção e amor se misturarem. O pretensioso é inflexível, impaciente e estúpido. O humilde recua, na recusa de exercer força, poder, violência.

A humildade é demasiadamente discreta. Se pretendo, um dia, ser humilde ninguém pode perceber. Mas, espero aprender a não cobiçar a divindade.


Ricardo Gondim

segunda-feira, 25 de maio de 2009

E falando em dom

Acredito que expressão de Lewis, gotas de graça se encaixa bem nesse video.




A Deus Somente A Glória,
Ricardo A. da Silva

Tudo é dom de Deus

Contudo, graças sejam dadas a ti, Senhor, Criador e ordenador do universo, ainda que me houvesses destinado a ser apenas criança. Pois já então eu existia, vivia, usava dos sentidos, cuidava da minha conservação, imagem da tua unidade misteriosa, fonte do meu ser; já então vigiava com o sentido interior, para a preservação de todos os meus sentidos, e, até nas reflexões modestas sobre pequenas coisas, eu me alegrava ao encontrar a verdade. Eu não aceitava ser enganado, tinha boa memória, tinha facilidade para falar, era sensível a amizade; fugia da dor, da humilhação, da ignorância. Que havia em tal criatura que não fosse digno de admiração e louvor? Mas tudo isso são dons do meu Deus. Não os recebi de mim mesmo; são coisas boas, e conjunto deles constitui meu eu.

Portanto, bom é aquele que me criou. Ele é o meu bem, e eu exulto em sua honra por todos os bens que constituem a minha experiência desde minha infância. Meu pecado era não procurar nele, e sim nas suas criaturas; isto é, em mim mesmo e nos outros; os prazeres, as honras e a verdade. Eu me precipitava assim na dor, na confusão e no erro. Graças a ti, ó minha doçura, minha glória, minha confiança, meu Deus, pelos dons que me deste. Conserva-os, pois. E assim me conservarás. Então crescerá e aperfeiçoara tudo que me deste. E eu mesmo viverei contigo, porque foste tu que me deste a possibilidade de existir.


Santo Agostinho
Trecho do Livro I das Confições, editora Paulos

sexta-feira, 22 de maio de 2009

E para descontrair um pouco

Para rirmos ou chorarmos diante de um safado que além de tudo é burro.




A Deus Somente A Glória,
Ricardo A. da Silva

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Um pouco mais de Agostinho

E como invocarei o meu Deus, ó meu Deus e meu Senhor? Pois, ao invocá-lo, eu o chamarei para dentro de mim. Que lugar haverá em mim, o Deus “que fez o céu e a terra”? Há, então, Senhor meu Deus, algo em mim que possa te conte? E o céu e a terra, os quais fizeste e nos quais me fizeste, eles são capazes de te conter? Ou então, visto quem sem ti nada existe daquilo que existe, será que tudo que existe te contem? Portanto, já que eu de fato existo, por que tenho de pedir tua vinda a mim, a mim que não existiria se não existisses em mim? Eu ainda não estive nas profundezas da terra e, no entanto, tu aí também estás. Pois, “mesmo que desça as profundezas da terra, aí estás”. Pois eu não existiria, meu Deus, eu de forma alguma existiria, se não estivesses em mim. Ou melhor, eu não existiria se não existisse em ti, “de quem tudo, por quem tudo, em que todas as coisas existem”? É assim, Senhor, é assim mesmo. Para onde te chamo, se já estou em ti? De onde virias para estares em mim? Para onde me afastaria, fora do céu e da terra, para que daí viesse a mim o meu Deus, que disse: “o céu e a terra estão cheios da minha presença”?


Santo Agostinho
Trecho do Livro I das Confissões, editora Paulos

Um pouco de Agostinho de Hipona

“Fizeste-nos para ti, e inquieto está nosso coração, enquanto não repousar em ti.”

“Quem me fará descansar em ti? Quem farás que venhas ao meu coração e o inebries a ponto de eu esquecer os meus males, e me abraçar a ti, meu único bem? Que és para mim? Tem misericórdia, para que eu fale. Que sou eu aos teus olhos, para que me ordenes amar-te e, se eu não o fizer, te indignares, e me ameaçares com imensas desventuras? Como se o não te amar já não fosse desgraça pequena! Dize-me, por compaixão, Senhor meu Deus, o que és tu para mim? “Dize à minha alma: Eu sou a tua salvação.” Dize de forma que te escute. Os ouvidos do meu coração estão diante de ti, Senhor; abre-os e “dize a minha à minha alma: eu sou a tua salvação.” Correrei atrás dessas palavras e o segurarei. Não escondas de mim a tua face: que eu morra para contempla-lá e para não morrer. ”


Santo Agostinho
Citações do Livro I da Confissões, editora Paulos

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O Nome de Deus

Segue mais um pouco de Rob Bell, e sua seria de videos nooma.




A Deus Somente A Gloria,
Ricardo A. da Silva

A Unica Necessidade De Deus

Ao criar a humanidade, Deus criou uma necessidade. Porque sendo amor, movimenta-se na direção do outro-necessário. Quem ama faz o outro importante, dá ao outro o estatuto de legitimador da felicidade plena. Só se é feliz completamente se o objeto de amor, inteiro, integra-se.

O que Deus faz ao criar a pessoa humana como pessoa livre é exatamente movimentar-se amorosamente: faz do outro tão importante (necessário) que faz falta. A criação da humanidade é a invenção divina de um outro sujeito de afetação. O que a pessoa humana faz, o jeito como vive, a maneira como reage diante da vida, mas principalmente, o que faz com a sua liberdade de dar as costas ou voltar-se ao divino, afeta o coração de Deus: ira-se, entristece-se, arrepende-se, compadece-se. As más escolhas humanas o incomodam. Deus aceitou, ao criar-nos, a possibilidade do “mal estar”, na mesma intensidade que o alternativo deleite de ser amado exclusivamente.

O amor, aprendemos com Deus na história bíblica, é uma aposta contra si mesmo, porque o amor faz o outro livre – único amor que sacia a alma amante. O outro torna-se, no amor criativo, um outro imprevisível.

Insisto, ao criar a humanidade, apenas por amor, Deus criou uma necessidade. A sua única necessidade. Espantoso: Deus precisa do homem!? Não como fundamento, Deus não se faz menos nem mais Deus a partir de mim, ou seja, para ser Deus sou absolutamente dispensável. Para agir como Deus, sou completamente desnecessário. Mas para que o seu ato criativo seja feliz, Deus aceitou fazer-me necessário.

Não foi na encarnação que Deus mais se humilhou por amor. Mera continuidade. Aconteceu na criação humana o mais desgastante gesto divino de amar. Humilhou-se ao risco de criar um ser tão amado e livre que se tornou sua única necessidade. “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único Filho, para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3.16)


Elienai Cabral Junior

Rob Bell E Cuidado Divino

Segue um breve video de um bom pensamento acerca do cuidado Divino.




A Deus Somente A Gloria,
Ricardo A. da Silva

Teodicéia

Acho que Epicuro foi quem formulou a questão a respeito da relação entre a onipotência e a bondade de Deus. A coisa é mais ou menos assim: se Deus existe, ele é todo poderoso e é bom, pois não fosse todo-poderoso, não seria Deus, e não fosse bom, não seria digno de ser Deus. Mas se Deus é todo-poderoso e bom, então como explicar tanto sofrimento no mundo? Caso Deus seja todo-poderoso, então ele pode evitar o sofrimento, e se não o faz, é porque não é bom, e nesse caso, não é digno de ser Deus. Mas caso seja bom e queira evitar o sofrimento, e não o faz porque não consegue, então ele não é todo-poderoso, e nesse caso, também não é Deus. Escrevendo sobre a Tsunami que abalou a Ásia, o Frei Leonardo Boff resume: “Se Deus é onipotente, pode tudo. Se pode tudo porque não evitou o maremoto? Se não o evitou, é sinal de que ou não é onipotente ou não é bom”.

Considerando, portanto, que não é possível que Deus seja ao mesmo tempo bom e todo-poderoso, a lógica é que Deus é uma impossibilidade filosófica, ou se preferir, a idéia de Deus não faz sentido, e o melhor que temos a fazer é admitir que Deus não existe.

Parece que estamos diante de um dilema insolúvel. Mas Einstein nos deu uma dica preciosa. Disse que quando chegamos a um “problema insolúvel”, devemos mudar o paradigma de pensamento que o criou. O paradigma de pensamento que considera o binômio “onipotência/bondade” como ponto de partida para pensar o caráter de Deus nos deixa em apuros. Existiria, entretanto, outro paradigma de pensamento? Será que as palavras “onipotência” e “bondade” são as que melhor resumem o dilema de Deus diante do mal e do sofrimento do inocente? Há outras palavras que podem ser colocadas neste quebra-cabeça?

Este problema foi enfrentado por São Paulo, apóstolo, em seu debate com os filósofos gregos de seu tempo. A mensagem cristã era muito simples: Deus veio ao mundo e morreu crucificado. Pior do que isso: Deus foi crucificado num “jogo de empurra” entre judeus e romanos, isto é, diferentemente dos outros deuses, o Deus cristão foi morto não por deuses mais poderosos, mas por homens. Sendo Deus, jamais poderia ser morto por mãos humanas, e sendo o Deus onipotente, jamais poderia nem mesmo ser morto. Paulo, apóstolo, estava, portanto, diante de um dilema semelhante ao proposto por Epicuro: Deus era uma impossibilidade filosófica.

Foi então que os apóstolos surgiram com uma resposta tão genial que os cristãos acreditamos que foi soprada pelo Espírito Santo: antes de vir ao mundo ao encontro dos homens, Deus se esvaziou da sua onipotência[i], isto é, abriu mão do exercício de sua onipotência, e por amor[ii], deixou-se matar por eles[iii]. (Eu disse que “Deus abriu mão do exercício de sua onipotência”, bem diferente de “Deus abriu mão de sua onipotência”).

O apóstolo Paulo admitia que não era possível pensar em Deus sem considerar o binômio bondade/onipotência. Optou pela palavra amor, assim como o apóstolo João, que afirmou “Deus é amor”[iv]. Jesus de Nazaré foi Deus encarnado na forma de Amor, e não Deus encarnado na forma de Onipotência.

Isso faz todo o sentido. Um Deus que viesse ao encontro das pessoas em trajes onipotentes chegaria para se impor e reivindicar obediência irrestrita, impressionando pela sua majestade e força sem iguais. Jung Mo Sung adverte que “a contrapartida do poder é a obediência, enquanto a contrapartida do amor é a liberdade”. Também assim pensou o apóstolo Paulo, ao afirmar que o que constrange as pessoas a viver para Deus é o amor de Deus (demonstrado na morte de Jesus na cruz)[v], e nunca o poder de Deus.

Na verdade, “Deus não tinha escolha”. Ao decidir criar o ser humano à sua imagem e semelhança, deveria criá-lo livre. Desejando um relacionamento com o ser humano, deveria dar ao ser humano a liberdade de responder voluntariamente ao seu amor, sob pena de ser um tirano que arrasta para sua alcova uma donzela contrariada. Somente o amor resolveria esta equação, pois somente o amor dá liberdade para que o outro seja livre, inclusive para rejeitar o amor que se lhe quer dar.

André Comte-Sponville é um ateu confesso (sei que vou levar pedradas) que discorre a respeito do amor divino como poucos que já li. Acredita que o amor divino é um ato de diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. Usa os argumentos de Simone Weil: “a criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos do que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras” [vi].

Você já imagina onde quero chegar. Isso mesmo, entre a onipotência e a bondade de Deus existe a liberdade do homem, e o compromisso de Deus em respeitar esta liberdade. Isso ajuda a entender porque existe tanto sofrimento no mundo. O mal não procede de Deus e não é promovido ou determinado por Deus. O mal é conseqüência inevitável da liberdade humana, que teima em dar as costas para Deus e tentar fazer o mundo acontecer à sua própria maneira. Diante do mal e do sofrimento, o Deus com os homens, encarnado em Amor, também sofre, se compadece, tem suas entranhas movidas de compaixão[vii].

Mas você poderia perguntar por que razão Deus não acaba com o mal. Isso é simples: Deus não acaba com o mal porque o mal não existe, o que existe é o malvado. O mal não é uma entidade ao lado de Deus. O mal é o resultado de uma ação humana em afastar-se do Deus, sumo bem. O monoteísmo cristão afirma que há um só Deus, e que o mal é a privação da presença de Deus. Os cristãos não somos dualistas que postulamos a existência do bem e do mal. O mal é apenas a ausência do bem. Por isso, o mal não existe, o que existe é o malvado, aquele que faz surgir o mal porque se afasta de Deus, o supremo e único bem.

Ariovaldo Ramos me ensinou assim, e completou dizendo que “para acabar com o mal, Deus teria que acabar com o malvado”. Mas, sendo amor, entre acabar com o malvado e redimir o malvado, Deus escolheu sofrer enquanto redime, para não negar a si mesmo destruindo o objeto do seu amor. Por esta razão Deus “se diminui”, esvazia-se de sua onipotência, abre mão de se relacionar em termos de onipotência-obediência, e se relaciona com a humanidade com base no amor, fazendo nascer o sol sobre justos e injustos[viii], e mostrando sua bondade, dando chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo sustento com fartura e um coração cheio de alegria a todos os homens[ix].

É uma pena que Epicuro não tenha lido os apóstolos cristãos, não tenha corrido no parque ao lado de Ricardo Gondim, não tenha ouvido Ariovaldo Ramos pregar, e nem tenha assistido às aulas de Jung Mo Sung.


Ed Rene Kivitz
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[i] Carta aos Filipenses 2.6-8
[ii] Evangelho de João 3.16
[iii] Atos dos Apóstolos 2.23
[iv] Primeira Carta de João 4.7
[v] 2Coríntios 5.14,15
[vi] Comte-Sponville, André, Pequeno tratado das grandes virtudes, São Paulo: Martins Fontes, 1995, Capítulo 18: Amor.
[vii] Evangelho de São Mateus 9.36; 14.14
[viii] Evangelho de São Mateus 5.44,45
[ix] Atos dos Apóstolos 14.17

Kenosis


No Concílio de Nicéia (325 d.C.), sob o imperador Constantino, e no primeiro Concílio de Constantinopla (381 d.C.), se o consenso de que Cristo era eterno, uma encarnação divina, (chamada de "homoousios"), que significa consubstancial com Deus Pai, em uma só pessoa, porém com duas naturezas - completamente divina e completamente humana - e propósitos. [1]

"O termo KENOSIS (ke/nwse - ekénose) que significa esvaziamento, é encontrado no Novo Testamento como o esvaziamento de Jesus (Fl 2,7), esta relacionado a sua divindade, mas precisamente ao deixar de lado seus atributos divinos sem perder sua natureza divina. Jesus deixa de depender de seu poder divino para depender do Espírito Santo".[2] A definição é simples, mas serve.

A discussão ao redor da kenosis de Jesus está no contexto das disputas cristológicas, que debate a natureza de Jesus Cristo durante os primeiros séculos do Cristianismo, e gira ao redor do objeto do esvaziamento, ou, o que foi que Jesus deixou no céu ao descer para a terra?

No emaranhado de heresias históricas a respeito, há pelo menos duas possibilidades de explicação da kenosis: esvaziamento na forma e nos atributos. Jesus é Deus esvaziado dos atributos próprios de sua divindade (onipotência, onipresença e onisciência), embora intocado em sua natureza divina (eternidade e santidade). Isso implica dizer que o esvaziamento de Deus em Jesus não diz respeito à natureza de Deus. Deus é o mesmo, antes e depois de sua kenosis. Podemos considerar a kenosis, portanto, um critério de relação de Deus com sua criação e suas criaturas.

Creio que Deus conduz a história independentemente de sua kenosis, mas entra na história sempre esvaziado, através de Jesus. Apenas para diferenciar os critérios de relacionamento de Deus com sua criação e suas criaturas, falemos do Deus exaltado (sem kenosis) e do Deus esvaziado, em Jesus (com kenosis). Deus conduz a história desde seu alto e sublime trono, Deus exaltado, mas participa da história em Jesus, o Deus esvaziado . Estes são os sentidos das chamadas teofanias: a presença de Deus, em Jesus, no Velho Testamento, antes da encarnação.

Aqui surge um mistério: existe kenosis antes da encarnação. Somente o Deus esvaziado se manifestaria no tempo e seria passível de ser percebido por suas criaturas. O Deus em seu alto e sublime trono habita em luz inacessível (1Timóteo 6.16), e não pode ser contemplado pelo mortal.

Por esta razão, quando Moisés solicita que Deus lhe mostre sua glória, Deus lhe concede ver sua bondade: "Eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti", pois "Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá" (Êxodo 33.20).

O Deus que precisa descer para saber o que se passa em Babel (Gênesis 11.5), verificar a pertinência das acusações feitas contra Sodoma e Gomorra (Gênesis 18.20 ,21), e colocar Abraão à prova (Gênesis 22.12) é o Deus esvaziado em Jesus. Dizer que tais expressões são meras figuras de linguagem implica a diminuição da verdade bíblica. Estes não são exemplos de antropomorfismo como figura de linguagem, mas de antropomorfismo como kenosis, pois o Deus que participa da história é o Deus esvaziado em Jesus.

Podemos concordar com Ariovaldo Ramos quando diz que em Filipenses 2 há, portanto, duas kenosis.. A primeira é Deus em forma de servo (a kenosis antes da encarnação): deus se esvazia para incluir a humanidade em si mesmo, diminui-se para que o finito conviva com o eterno sem ser esmagado pela eternidade e pela glória do Eterno; a segunda é Deus em forma humana (a kenosis da encarnação): Deus se esvazia para se identificar em termos absolutos com a humanidade (Hebreus 4.15,16; 10.5) e para conduzir a humanidade à participação em sua natureza divina (2Pedro 1.4).

Os grandes conflitos da espiritualidade cristã consistem no desejo humano de conviver aqui e agora com o Deus exaltado, negligenciando todas as possibilidades de convivência com o Deus esvaziado.

A maioria das pessoas quer um Deus exaltado: onipotente, onipresente e onisciente, que invade a história com seu poder e autoridade e interfere na realidade em benefício dos seus. A proposta cristã, entretanto, é um convite ao seguimento do Deus esvaziado, que habita nos seus através do Espírito Santo. Sua forma de atuação não é a intervenção que perpetua a imaturidade, mas a cooperação que convida à emancipação e autonomia.

Quanto tempo será necessário para que os cristãos assumam que o Deus exaltado continua a agir na história como Deus esvaziado? Este é o tempo de afirmação da terceira kenosis: o esvaziamento de Deus para habitar sua igreja: Deus age em nós, através de nós, apesar de nós, e nos dá o privilégio de cooperar com Ele em sua obra de redenção (João 14.16-23; 1Coríntios 3.16; 6.19; 12.4-7; Efésios 2.20-22; 1Pedro 2.4-6; Apocalipse 21.3).


Ed Rene Kivitz

A Grande Omissão

Segue mensagem do Pr Ed Rene Kivitz, outras mensagens como essa se encontram no site da Batista Água Branca, conheça o site clicando aqui.




A Deus Somente A Gloria,
Ricardo A. da Silva

terça-feira, 5 de maio de 2009

Ensaio sobre visão

Quanto menor o seu mundo, maiores os seus problemas, mais intenso seu sofrimento e menor o seu Deus. Pois nos últimos dias os horizontes do meu mundo foram estendidos, alcançando Casablanca e Marrakech, no Marrocos, e Dakar, no Senegal. Tudo agora tem outra densidade e tamanho. A vida é uma questão de proporções – e as proporções, evidentemente, dependem dos termos de comparações. O que vi e ouvi me obriga a reorganizar valores e medidas.

O Marrocos é um país do norte da África com 36 milhões de habitantes, mas com apenas pouco mais de 1.000 cristãos, congregados em aproximadamente 50 igrejas que se reúnem nas casas, grupos não maiores do que vinte pessoas. Um pastor marroquino me esclareceu que considera igreja aquele grupo que se reúne regularmente e tem uma liderança espiritual definida; nesse caso, o número de igrejas marroquinas chegaria apenas a vinte e cinco, pois as demais dependem de lideres itinerantes e chegam a ficar meses sem uma reunião.

Já no Senegal, na costa ocidental africana, existem os marabus, mestres do Corão que escravizam, abusam sexualmente e torturam milhares de meninos. Essas crianças, os talibês, são entregues pelos próprios pais, que acreditam que seus filhos estarão assim servindo ao Islã. Na chamada África Negra, aproximadamente 20% das mulheres são submetidas à mutilação vaginal, feita sem anestesia com instrumentos como lâmina de barbear, facas ou mesmo tesouras. A excisão mínima é a retirada do capuz do clitóris. Já a infibulação consiste na amputação do clitóris e dos pequenos lábios, seguido do corte dos grandes lábios, que depois são aproximados e suturados. Apenas uma minúscula abertura é deixada, para escoamento da urina e da menstruação. Esse orifício é mantido aberto por algo como um palito de fósforo.

O primeiro ímpeto é pedir a Deus que me faça esquecer rapidamente o que vi e ouvi. A vontade que dá é de balançar a cabeça para que as imagens se dissolvam e sejam substituídas. Mas considero a possibilidade de pedir ao Senhor exatamente o contrário: que jamais me deixe esquecer das imagens da barbárie explícita na violência praticada contra mulheres e crianças, da pobreza mais extrema das ruas de Dakar e da quase absoluta carência da Igreja no Marrocos.

A pobreza ignominiosa da África islâmica faz emergir a clássica pergunta: onde está Deus? A miserabilidade social e a barbárie perpetrada pela religião lançam o inquiridor num vazio de Deus, como se ele não estivesse lá. Mas o mesmo ocorre com a América protestante: Deus também parece não dar as caras por entre os neons de Las Vegas, as prateleiras do Wal-Mart e as calçadas de Wall Street. A opulência da sociedade de consumo, que transforma tudo em mercadoria, inclusive Deus, faz cair sobre o Ocidente um outro tipo de miséria, e talvez a mais perigosa e nefasta, pois vem disfarçada de luz, progresso e civilização.

Essas experiências me fizeram lembrar a expressão que costura o enredo de Ensaio sobre a cegueira: “Se tu pudesses ver o que eu sou obrigado a ver, quererias estar cego”. José Saramago sugere que, num mundo onde todos estão cegos, a visão passa perto de ser uma maldição. Quem enxerga se torna responsável, e o peso da responsabilidade aos poucos vai se tornando insuportável, quase tanto como a própria cegueira.

A Bíblia Sagrada fala da experiência espiritual cristã como “passagem das trevas para a luz” e anuncia a irrupção do Reino de Deus na pessoa de Jesus. A descrição é clara: “O povo que estava em trevas viu uma grande luz”; e, por essa razão, “aqueles que seguem a Jesus não andam em trevas”. Quem nasceu de novo, isto é, recebeu o toque do Espírito Santo e acolheu o reinado de Deus em sua vida foi iluminado e passou a ver, como o cego curado por Jesus: “Eu era cego, agora vejo”.

Cristo disse que o olho é a lâmpada do corpo. Assim, se você tiver um olho bom, todo o seu corpo será repleto de luz; mas se tiver um olho mau, tudo em você estará repleto de escuridão. E, continua o Mestre, “caso a luz que está em você seja escuridão, quão terrível será essa escuridão”. No Judaísmo, “ter um olho bom”, um ayin tovah, significa ser generoso; e ter “um olho mau”, ou ayin ra’ah, significa o contrário – ser mesquinho. A cegueira é comparada ao egoísmo; a visão, à solidariedade, à compaixão e também à auto-doação voluntária e ao serviço abnegado. Enxergar é servir. Andar na luz é praticar as boas obras, preparadas de antemão para que andássemos nelas, e sem as quais a fé é morta.

Contrariando o dito popular que afirma que o pior cego é aquele que não quer ver, podemos crer que a pior cegueira é a cegueira da cegueira. Quem transforma a fé em Cristo numa crença inconseqüente é cego que pensa que vê. E é cego de sua própria cegueira, o que faz dele o pior dos cegos. A distância entre a cegueira e a visão é a mesma que separa a indiferença do engajamento. Quem recebe a graça de ver recebe a missão de servir.


Ed Rene Kivitz

domingo, 3 de maio de 2009

Outro Deus E Outra Espiritualidade

Chegou a minha vez de dizer “Deus morreu, vocês mataram Deus”. Sei dos riscos. Dizem que gato escaldado tem medo de água fria. Mas alguns gatos não se dão por vencidos. Aliás, dizem também que gatos têm setes vidas. Que seja.


Tudo bem, posso atenuar um pouco, respeitando as pessoas que me querem bem e temem por mim. Temem que eu me comprometa em lutas quixotescas. Temem as retaliações que posso sofrer. E, na verdade, temem que perca o juízo e a fé. Nesse caso dou um passo atrás e digo que um deus morreu em mim, e nasceu outro, que me seduziu com amor eterno. Por ele me apaixonei.


O deus que morreu foi exaltado na subcultura da religiosidade evangélica brasileira. Era basicamente um deus que: 1. vivia de plantão para me poupar de qualquer tragédia, evitar meus sofrimentos e abreviar as situações que me trariam qualquer desconforto; 2. prometia satisfazer não apenas minhas necessidades, mas também meus desejos; 3. estava comprometido em favorecer-me em todas minhas demandas contra os pagãos; 4. compensava minhas irresponsabilidades e ignorância em troca da minha fé; 5. manipulava todas as circunstâncias da minha vida como um tapeceiro que corta fios de dá nós no emaranhado do avesso do tapete para revelar a bela paisagem no final do processo, capaz de encantar todos aqueles que olham pelo lado certo. Enfim, morreu em mim aquele deus parecido com a figura do superpai, que levou homens como Freud, Nietzsche e Sartre a desdenhar da religião.


Esse deus morreu em mim porque se mostrou falso. Isto é, não existia de fato ou estava descrito de maneira equivocada, pois não precisamos ser muito sagazes para perceber que o justo sofre e convive com frustrações, que os maus prosperam, que Deus não faz o que compete aos seres humanos e que não se pode conceber que Deus tenha decidido na eternidade que missionária Fulana de Tal seria estuprada numa esquina de São Paulo para um cumprir um propósito, pois, neste caso, o estuprador seria isento de responsabilidade.


Não é razoável a crença em um deus que coloca seus fieis numa bolha protetora contra toda sorte de dificuldades e possibilidades de dores. A Bíblia Sagrada registra que todos os homens que foram íntimos de Deus e cumpriram tarefas designadas por Ele sofreram, mais até do que muitos que lhes deram as costas. Isso levou Teresa de Ávila a afirmar: “Se o Senhor trata assim os seus amigos, não se admira que tenha tantos inimigos”.


Tampouco faz sentido o relacionamento com Deus motivado no interesse de bênçãos e galardões, por isso faz com que Deus deixe ser um fim em si mesmo e se torne um meio para a prosperidade, isto é, passa a ser um ídolo a serviço dos fieis. Igualmente incoerente é acreditar que a fé é suficiente para o êxito, pois ninguém passa no vestibular “pela fé”. Finalmente, não é sensato acreditar que Deus é a causa de tudo quanto acontece no mundo, pois, se assim fosse, Deus estaria por trás de todo ato de maldade, levando o malvado a agir, de modo que ninguém seria culpado pelos seus atos.


Essa coisa de “Deus tem um plano pra cada criatura” é incoerente em relação à fé cristã, pois seres criados à imagem e semelhança de Deus não podem ser privados de liberdade. Ou os seres humanos são responsáveis por seu destino, ou não podem ser julgados moralmente. Esse deus morreu. Mas sua morte fez ecoar uma pergunta no ar: Deus tem um favor especial aos nascidos de novo? Isso é, quanto aos não-cristãos, os cristãos são tratados de maneira diferente pelo seu Deus?


Minha resposta é “sim” e “não”. Sim, porque, por definição, aqueles que se relacionam de maneira consciente e voluntária com Deus desfrutam de possibilidades que extrapolam os horizontes de vida daqueles que vivem como se Deus não existisse A pergunta a respeito do cuidado especial de Deus não se refere a favoritismo ou acepção de pessoas, mas a algo inerente ao relacionamento. Algo como alguém perguntar se uma mãe trata diferente seus filhos em relação a outras crianças. É claro que sim, pois estão sob seus cuidados e sob sua autoridade. Mas, em tese, uma mulher que vive a experiência da maternidade trata todas as crianças com o mesmo senso de justiça e compaixão. E é justamente nesse sentido que Deus não faz nenhuma distinção entre os que o reconhecem e os que o rejeitam: Ele faz o sol nascer sobre justos e injustos.


Mas então qual foi o Deus que nasceu para ocupar o lugar do deus que morreu; ou, se preferir para tornar a coisa um pouco mais prática, o que posso esperar de Deus?


Sendo cristão, enxergo a vida com outros olhos. Experimentei a metanóia, que chamam “arrependimento”, mas creio ser uma expansão de consciência (do grego meta=além e nous=mente). Vivo sob valores, imperativos, prioridades e propósitos diferenciados. Conhecer a Deus me faz andar na luz, na verdade, livre de pesos, culpas e máscaras, com a consciência e as intenções tão puras quanto um ser humano imperfeito as pode ter, e isso já basta para que minha vida dê um salto de qualidade imensurável.


Recebo subsídios de Deus no meu “homem interior”, pois sendo verdade que “tudo posso naquele que me fortalece”, aprendo a viver o contentamento em toda e qualquer situação. As promessas de Deus aos seus não dizem respeito ao conforto circunstancial ou à prosperidade aqui e agora, mas afetam a interioridade humana com, por exemplo, paz que excede o entendimento e alegria completa. Mais do que isso, a intimidade com Deus não torna a vida mais fácil, mas me faz mais humano, mais maduro, mais capaz de amar com lucidez que escolhe as coisas mais excelentes e mais capaz de enfrentar com dignidade toda e qualquer situação.


Sou integrado numa comunidade de cristãos que me abençoa na dinâmica da mutualidade. O socorro de Deus para minha vida chega pelas mãos dos meus irmãos. São os meus irmãos que me falam as palavras de Deus, repartem comigo seu pão, andam do meu lado no vale da sombra da morte. Experimento a presença de Deus na comunhão com os filhos de Deus, vendo Deus na face deles.


Tenho minha consciência e sensibilidade despertadas para o sofrimento da raça humana. Sinto a agonia dos cosmos que sofre suas dores, de modo a receber em meu coração um pouco do amor e da compaixão do coração de Deus. Acato a utopia do novo Céu e da nova Terra, não como sonhos irrealizáveis mas como promessa que motiva a ação toda vez que sou interpelado pelo Deus que me fala desde o clamor dos oprimidos.


Vivo sob o olhar amoroso, poderoso e justo de Deus, que interfere em minha vida à luz de sua economia eterna, a seu critério, e isto é mistério da graça, quer dizer, não depende dos méritos dos beneficiados. Descanso no fato de que, apesar de Deus não ser a causa primeira de tudo que me acontece, nada do que venha a me acontecer estará fora de seu conhecimento, controle e cuidado. É suficiente crer que Deus opta por deixar a vida correr seu curso normal; e geralmente é isso que faz; nada pode me separar do seu amor, que está em Cristo Jesus, meu Salvador.


Em síntese, morreu o deus que fazia de mim uma criança que chorava a cada desencontro da vida. Recebi de Deus o convite para crescer a fim de que ele possa me receber como seu cooperador, seu amigo, uma pessoa para quem não tem segredos e que encontra a felicidade não na vida confortável, mas na vida digna. Com a morte de um deus, morreu também uma espiritualidade. E nasceu outra, marcada pela graça, pela fé e pela resistência.



Ed Rene Kivitz

Introdução do livro "Outra Espiritualidade"

da editora Mundo Cristão. (Grifos meus)

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