domingo, 14 de setembro de 2008

O cristão segundo Dietrich Bonhoeffer

Deus nos faz saber que temos de viver como pessoas que dão conta da vida sem Deus. O Deus que está conosco é o Deus que nos abandona (Marcos 15.34). Deus é o Deus perante o qual nos encontramos continuamente. Perante e com Deus vivemos sem Deus. Deus deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz; Deus é impotente e fraco no mundo e exatamente assim, e somente assim, ele está conosco e nos ajuda.

Em Mateus 8.17 está muito claro que Cristo não ajuda em virtude da sua onipotência, mas da sua fraqueza, do seu sofrimento! Neste ponto reside a diferença decisiva em relação a todas as religiões. A religiosidade do ser humano o remete, na sua necessidade ou aflição, ao poder de Deus no mundo, Deus é o deus ex machina [em 1942 Bonhoeffer também afirmou: 'Portanto, é bom aprender o quanto antes que sofrimento e Deus não constitui uma contradição, mas ao contrário, uma unidade necessária; para mim, a idéia de que Deus mesmo sofre sempre foi uma das doutrinas mais convincentes do cristianismo'].

A Bíblia remete o ser humano à impotência e ao sofrimento de Deus, somente o Deus sofredor pode ajudar. Neste sentido, pode-se dizer que o desenvolvimento que levou à maioridade do mundo, através do qual se acaba com uma concepção errônea de Deus, liberta o olhar para o Deus da Bíblia, que obtém poder e espaço no mundo por meio de sua impotência....

O poema ‘Cristãos e Pagãos’ contém uma idéia que irás reconhecer aqui. ‘Cristãos ficam ao lado de Deus na sua paixão’, é isto que distingue cristãos de pagãos. ‘Vocês não conseguem vigiar comigo nem por uma hora?’, pergunta Jesus no Getsêmani. Isto é uma inversão de tudo o que o ser humano religioso espera de Deus. O ser humano é conclamado a compartilhar o sofrimento de Deus por causa do mundo sem Deus. Portanto, ele realmente tem de viver no mundo sem Deus e não deve procurar encobrir ou idealizar em termos religiosos essa ausência de Deus; ele tem de viver de ‘forma mundana’ e justamente assim participa dos sofrimentos de Deus; ele pode viver ‘de forma mundana’, isto é, está liberto dos falsos vínculos e bloqueios religiosos.

Ser cristão não significa ser religioso de uma determinada maneira, tornar-se alguém (um pecador, um penitente ou um santo) com base em alguma metodologia, mas significa ser pessoa; Cristo não cria em nós um tipo de ser humano, mas o próprio ser humano. Não é o ato religioso que produz o cristão, mas a participação no sofrimento de Deus na vida mundana.

Esta é a metanóia [arrependimento]: não pensar primeiro nas próprias necessidades ou aflições, perguntas pecados e medos, mas deixar-se arrastar para o caminho de Jesus, para dentro do evento messiânico do cumprimento de Isaías 53 agora.

Por isto: ‘creiam no evangelho’ ou em João a referência ao ‘Cordeiro de Deus que carrega os pecados do mundo’ (à parte: A. Jeremias afirmou recentemente que, no aramaico, ‘cordeiro’ também pode ser traduzido por ‘servo’. Muito bonito com vistas a Isaías 53!).

No NT, esse ser arrastado para dentro do sofrimento – messiânico – de Deus em Jesus Cristo ocorre das mais diversas formas: através da comunhão de mesa com os pecadores, através de ‘conversões’ no sentido mais estrito do termo (Zaqueu), através do ato da grande pecadora (que se realiza sem qualquer confissão de pecados) (Lucas 7), através da cura dos doentes (Mateus 8.17), através do acolhimento das crianças. Os pastores, assim como os sábios do Oriente, estão [junto à] manjedoura, não como ‘pecadores convertidos’, mas simplesmente porque, assim como são, são atraídos pela manjedoura (estrela).

O centurião de Cafarnaum, que não faz qualquer confissão de pecados, é apresentado como exemplo de fé (cf. Jairo). Jesus ‘ama’ o jovem rico. O camareiro (Atos 8) e Cornélio (Atos 10) são tudo menos existências à beira da ruína, Natanael é um ‘israelita sem falsidade’ (João 1.47); por fim, José de Arimatéia e as mulheres do túmulo. A única coisa que todos têm em comum é a participação no sofrimento de Deus em Cristo. Isto é a sua ‘fé’.

Nada de metodologia religiosa; o ‘ato religioso’ sempre é algo parcial, a ‘fé’ é algo inteiro, um ato de vida.

Jesus não conclama para uma nova religião, mas para a vida. Mas como se apresenta essa vida, essa vida de participação na impotência de Deus no mundo? Sobre isso escreverei na próxima vez, espero. Hoje só mais isto: se queremos falar de Deus de forma ‘não religiosa’, então teremos de fazê-lo de tal maneira que a impiedade do mundo não seja de algum modo encoberta, mas, antes, descoberta, e exatamente assim seja lançada uma luz surpreendente sobre o mundo. O mundo que chegou à maioridade é mais sem-Deus e, por isto mesmo, talvez esteja mais próximo de Deus do que o mundo menor de idade.


Dietrich Bonhoeffer

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